Lucas1659 02/07/2023
Um imenso talvez, uma grande possibilidade
O quadrinho abre já com uma proposta muito interessante. O espaço de armazenamento do mundo está acabando — nesse cenário em que a armazenação se encontra na mão de funcionários do povo, em primeira instância isso me deixou "bi-curioso". Primeiro por ser uma premissa interessante de distopia em que nossa evolução e capacidade de produção de conteúdo está pesando nossa memória — uma realidade em que o virtual, digital e humana é uma coisa só de certa forma, que o tecido das redes virtuais não aguenta mais armazenar nada e então as perguntas: "o que jogaríamos fora?"; a outra foi necessário dar um salto: como a humanidade deixaria na mão de poucas pessoas (três) o destino daquilo que elas tem de mais precioso: sua memória, sua história. Não me parecia provável, até que pareceu ser: a imagem do grande descaso e o egocentrismo individual, qual aparece uma série de vezes na obra, em que um dos personagens diz que tem que apagar tais obras pois como fulano de tal vai ficar sem conseguir postar suas fotos na praia ou de seu café expresso que ele toma todo dia. Qual é mais importante? Qual tem mais peso?
Nessa balança sinistra, o que soma o peso de um objeto é de uma elaboração vil. Obras como [[2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968)]] — e todas as informações inerente a essa obra serão apagadas da memória da humanidade, a balança que é composta por uma pessoa que ataca e outra que defende, nos revela como a condenação a uma evolução rápida nos levou. [[Slavoj Zizek]] nos aponta esse temor, desse crescimento desenfreado não só como catástrofe ecológica, mas humana.
Então temos esse exercício imaginativo especulativo, que é muito, muito bem dinamizado e serve como uma extensão critica para o desastre que tecnocracia pode nos levar, em que a tecnologia prevalece diante do resto das produções humanas. Sendo a produção de conteúdos vazios de significado uma fonte inesgotável e crescente que avassala todo o resto.
Um dilema interessante surge quando a preservação de algum conteúdo não autorizado é dado como ilegal e as pessoas são investigadas e punidas por isso, no maior estilo [[1984 - George Orwell]]. Temos duas linhas interessantes aqui. Há dentro da instituição esses investigadores que sabem que alguém anda preservando arquivos de forma ilegais. Nosso herói encontra um confessor, um homem que está preocupado com os fatos históricos, principalmente aqueles políticos que apontam para os malfeitores da humanidade e que as pessoas tem o direito de saber essa história, de saber o que fizerem e da luta, das conquistas, das derrotas, do horror e da glória. O herói por outro lado tem outra preocupação, menos nobre — alguns poderiam dizer e talvez com fragmentos de razão, mas é justamente aqui o diferencial da obra que destoa do caminho comum em outras distopias.
Não acompanhamos o guerrilheiro — no sentido tradicional do revolucionário político — mas é sempre bom lembrar que a luta política é para o além de pegar em armas: o lazer é não só um espaço de saúde poderosa, como, e por causa disso, uma ferramenta de controle com capacidades sinistras. E é nessa vertente que o livro aposta, o lazer (e a arte), o hedonismo como objetivo máximo da humanidade é uma forma surreal de controle. Ao optar for salvar filmes obra de artes, nosso herói almeja estabelecer-se um herói dos sonhos distópicos de cinéfilos? Não! A arte como lazer, como produto em si, é ignorar o poder avassalador da arte. Ela nos coloca em confronto com a nossa própria realidade, nossos medos e desejos mais profundos e os mais emergentes. Zizek no documentário [[O guia pervertido do cinema (2006)]] nos diz " É apenas no cinema que encontramos aquela dimensão crucial que não estamos prontos para confrontar em nossa realidade. Se você está procurando pelo que na realidade que é mais real que a realidade, procure na ficção cinematográfica". A ficção, a fantasia, é um dos subprodutos mais honestos que temos da nossa realidade, pois por ser uma fantasia, por ser uma ilusão que não tenta se esconder como (estamos falando de diegése e não mimése) que podemos entender a verdade que produz essa ilusão.
E é essa dimensão que não é considerada como importante pelos carrascos de dados. São levada em contas só aquelas informações que condizem justamente com aquilo que condena a humanidade na distopia guiada pela inteligência artificial que vem para agilizar nossa vida. E nesse tentativa desesperada de transcender o tempo como sinônimo de humanidade nos condenamos a ver o mundo através de representações vazias e superficiais, aquilo que não da para ser aproveitado em um relance é descartado, aquilo que não é raso, que não cabe em no pires de uma xícara, será descartado. Nada cria raiz, tudo some na velocidade de um pensamento. Nesse ponto, [[2001 - Uma Odisséia no Espaço (1968)]] representa a antítese descartada: um filme longo, sonolento qual o protagonista tentou ver por mais de duas vezes até por fim conseguir. Então a obra parece apressar-se e parece abandonar a própria premissa.
Talvez eu esteja perdendo algo — talvez não tenha dado tempo para essa segunda metade do livro se enraizar e produzir sentido em mim, talvez o tédio seja o desafio imposto para encobrir uma verdade profunda que nos apresenta como aparência de algo a ser refletido, talvez seja o caso de tentar ler de novo — talvez a história tenha se perdido, mas o que me é de fato é que meu me perdi da história junto com os corpos dos genitores. Talvez a mensagem esteja muito profunda ali e talvez eu nunca ache. Talvez, talvez. Só em uma sociedade em que a corrida tecnológica não é uma prioridade que o talvez senha sorte de ser outra coisa, de verdadeiramente crescer e evoluir.