Esta edição de "A barca dos homens" põe o público leitor de Autran Dourado de novo em contato com um livro extraordinário esgotado há muito.
Dentre toda a obra de Autran, o romance se impõe como um marco fundamental. Depois dos livros da juventude, a que denominou "novelas de aprendizado", Autran deu um primeiro "salto de qualidade" com o romance "Tempo de amar" (1952), amadurecendo em definitivo com este "A barca dos homens" (1961). Aqui, o domínio da técnica narrativa é assegurado, em sua plenitude, por uma hábil construção do enredo acompanhada de uma linguagem densa, de contornos nítidos, porém vazada num contexto misterioso, cheio de subentendidos.
Grande parte dos sucessos e episódios do romance são vistos pelos olhos de um indivíduo retardado, o Fortunato, cuja psicologia primitiva, perturbada e perturbadora, serve de contraste às mentes lógicas e racionais dos adultos em geral.
E esse contraste não é o único do romance. Ao passo que Fortunato tem uma vida própria que não aparece aos outros (o leitor se apercebe da intimidade dele por meio de parágrafos soltos, intercalados na segunda parte do livro), é a vida desses outros que pontua os seus comentários íntimos, em seus delírios alucinados e deambulatórios. O romance, a partir mesmo do título, tem todo o sentido de travessia, de passagem pela vida, e pode ser lido como a crônica da destruição progressiva do casamento de Maria e Godofredo. Sente o leitor, a cada instante, o drama de duas criaturas vivendo juntas sem amor, sem o carinho e o respeito mútuos que alicerçam uma união.
E nessas circunstâncias avulta a presença de Fortunato, com sua expressão custosa de poucas palavras, sua percepção intuitiva bem próxima à das crianças. Em todo o drama das pessoas que com ele convivem, ele tem sempre uma parte, é um fator de insegurança justamente pelo contraste que apresenta. Com "A barca dos homens" Autran Dourado realizou um romance que prefigura com sucesso a sua esplêndida obra posterior.
Ficção / Literatura Brasileira / Romance