As muitas faces da história

As muitas faces da história Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke


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As muitas faces da história


nove entrevistas




Os métodos da chamada 'nova história cultural' têm sido amplamente discutidos nos últimos anos. Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke teve a excelente idéia de entrevistar alguns praticantes desse 'estilo' de história, pedindo-lhes que justificassem suas abordagens e também que, refletindo sobre suas trajetórias intelectuais, constassem um pouco de suas próprias histórias. O resultado dessas conversas é uma série de diálogos, ao mesmo tempo informais e esclarecedores, que conseguem a façanha de levar o leitor para a intimidade da 'oficina' do historiador.





Saiu na Imprensa:



Jornal da Tarde / Data: 23/6/2001

Um livro de saborosas e elucidativas conversas com historiadores

Em tom de bate-papo, Maria Lúcia Pallares-Burke ouviu nove pesquisadores e produziu uma obra que traz ao leitor diferentes facetas do fazer histórico



Por Lênia Márcia Mongelli



Eis um livro em que a competência dos entrevistados, historiadores de respeito, nada fica a dever à do entrevistador, guardadas as especificidades da avaliação e fazendo uma comparação de natureza formal. Os cuidados de que Maria Lúcia Garcia Pallares-Burke se cercou para a realização das entrevistas são tão evidentes, as matérias referidas nas conversas cobrem um espectro tão amplo de interesses, que o resultado é quase uma obra teórica, de exame de modernas metodologias históricas, vistas do ângulo de quem as pratica como satisfação pessoal e como dever de ofício. O título faz jus a essa polifonia de vozes que se entrecruzam e se complementam.



As entrevistas oferecem um roteiro consistente e sugestivo para a maneira de se ler a produção do entrevistado, para se conhecer o caráter inovador de suas propostas científicas e para melhor inseri-lo em pesquisas afins, num diálogo interdisciplinar que será, talvez, a faceta mais saborosa dos textos. Inclusive as perguntas íntimas, que se voltam para questões pessoais, têm por fim filiar o homem ao intelectual e ambos à chamada “Nova História”, de extração francesa – a que nenhum deles, em maior ou menor dose, ficou imune, quer para endossá-la, quer para combatê-la, quer, ainda, para situá-la em suas devidas proporções. Num tom de bate-papo, que transcorre muito à vontade, vai-se erigindo uma rica interlocução com os pioneiros dos Annales e com especialistas como Le Goff, Duby, Mattoso, etc – que também dedicaram páginas e páginas a compreender a revolucionária “história das mentalidades”.



Cada entrevista realizada por Maria Lúcia organiza-se em três momentos distintos: inicia-se com uma biografia concisa do entrevistado, em que se situam as linhas de força de sua historiografia e em que claramente se evitam contradições com as falas posteriores; em seguida, vêm as densas conversas, cujas perguntas, fundamentadas, suscitam respostas longas, baseadas em argumentos que exigem retrospectivas por diversos caminhos; por fim, o útil rol da bibliografia dos entrevistados, com indicação de suas obras já traduzidas no Brasil.



Aí está o segredo do sucesso: como historiadora que é, Maria Lúcia conhece bem os trabalhos dos entrevistados, de modo a reconstituir “por dentro” sua biografia intelectual, respeitando de forma ordenada uma cronologia, o que é indispensável ao leitor não familiarizado com a complexidade das teorias expostas. A prova mais contundente da objetividade desse mergulho, que preserva um distanciamento sóbrio sem comprometer a pessoalidade da relação, é o desvendamento da humildade, das hesitações, das incertezas, das angústias sob a persona do scholar seguro do que divulga. Para além das informações disciplinares, formuladas com rigor e exatidão, avultam homens apaixonados por uma causa – a da pesquisa – sem a qual perderiam a razão de viver. São acadêmicos que não se reduzem à academia – lição que conduz a muitas reflexões.



O leque é variadíssimo: a par de uma personalidade pujante como a do antropólogo Jack Goody, viajante incansável por África e Ásia, com larga vivência de tribos ignoradas, temos o historiador inglês Keith Thomas, medularmente britânico, preocupado com os efeitos de cada palavra dita, cuidadoso nas conceituações, crítico feroz do “prazer que rebaixa”; ou, ainda, Natalie Zenon Davis, única mulher no grupo contemplado, tida por autoridade em assuntos da França do século 16 e particularmente empenhada nos conflitos de classes (movimentos raciais, feministas, etc) capazes de interferir nos destinos de uma região ou de um país. E poderíamos continuar enumerando, cada um na particularidade de seu interesse imediato e naquilo em que cruza com os demais.



É assim que todos eles defendem convicções mais ou menos similares, comprometidas com a escolha do método: segundo esses especialistas – e nesse ponto Jack Goody é radical – História que se preze tem de ser comparativa, sob pena de o que se afirma para determinada região, em determinado momento, poder ser negado pelo que se passa na casa vizinha quase ao mesmo tempo. Generalizações só serão aceitáveis quando esgotadas suas implicações. Principalmente porque, alerta Goody, nenhuma cultura é imóvel ou estagnada, o que deve ser levado em conta quando se procede ao necessário recorte de matéria documental.



Depreende-se daí a sugestão da interdisciplinaridade – outra insistência comum –, faca-de-dois-gumes pelo risco da indiferenciação, sem a qual, contudo, se faria uma História auto-referenciada, estéril na estreiteza de seus horizontes e precária em suas conclusões. Disciplinas como a Antropologia, a Psicologia, as Ciências Sociais, a Literatura ou a Semiótica são indispensáveis ao que hoje é a menina-dos-olhos de muitos, a história cultural. Daniel Roche, um dos entrevistados, professor do Collège de France, é dos que a defendem contra a prática do antigo positivismo marxista, a ver na “história econômica” a base para a interpretação da sociedade. Não que se negue Marx, mas que ele seja revisto pela óptica do que se convencionou designar por “superestrutura” – ou seja, os traços comuns, as “constantes” entre as épocas e os povos.



Do ângulo da amplitude dessa “nova história”, a experiência do americano Robert Darnton, largamente traduzido no Brasil, é deveras estimulante. Ele assinala com ênfase o papel decisivo que a prática de jornalista representou para seu trabalho de historiador, pois passou muitos anos fazendo reportagens policiais, vasculhando arquivos secretos, proibidos, à cata de provas, testemunhos, indícios de crimes ou sinais de equívocos jurídicos. Essa rotina trouxe a ele hábitos “historiográficos” muito saudáveis: a necessidade compulsiva de recorrer às fontes, a agudeza do senso crítico para localizar o detalhe tantas vezes “desmascarador”, a precisão de linguagem para compor um texto jornalístico que pode incidir diretamente sobre a reputação do indiciado, etc. De tal forma que o “retrato” que a matéria compõe não deve distar muito do documento que o ensejou. É onde se encontram, por exemplo, o historiador e o jornalista, a tornar compatíveis tarefas aparentemente diversas.



Segundo os nove entrevistados, o bom historiador é o que está atento ao pormenor surpreendente. Trabalho detetivesco, como afirma Carlo Ginzburg, outro muito conhecido dos brasileiros: ao relatar uma série de experiências próprias em que a novidade estava no óbvio, Ginzburg aposta na sensibilidade do historiador, que, como o literato (lembre-se ser ele filho de uma grande romancista), respeita o papel da imaginação na reconstituição dos fatos. Afinal, Hayden White tem falado sistematicamente da parceria entre História e Literatura. E essa é só uma das questões cruciais da epistemologia historiográfica.






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