Conjugado

Conjugado Luiz Antonio Ribeiro


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Conjugado





"Me empanturrei hoje e nem comida em casa tinha.

Realmente estava tudo quadrado e menor, talvez porque mais quente, talvez porque mais realmente geométrico.

Da janela via um velho pesado

pelado

peludo

polaco

Que sempre me dizia que “a vida é muito Sérvia”.

E eu concordava pra não contrariar

Mesmo achando a vida bem mais um Montenegro.

Eu tinha alguns motivos para desconfiar de tudo:

Meu filtro pingava no contratempo do relógio,

Um calo latejava no ritmo do coração,

E o estômago roncava dodecafonicamente como era sua vontade.



Fazia um tempo que eu não saía de casa.

Decidi desde que descobri uma parada
que acontecia deste lado da porta de casa.

Além de uns destilados que engrossavam minha língua.


Mas eu não entendia muito bem o que acontecia

Não sabia se era

Uma suspeita.

Não tinha ideia

Se era

Uma afronta

Não tinha ideia

Se era

Uma loucura

Se era não sei

O que acontecia comigo.





Ah, e não vamos falar de culpa

Porque culpa eu não tenho eu não tive eu não terei eu nem pensei em ter culpa em nada disso

Nem ela

ela?

Não.

Não há culpa nessa parada que eu descobri

Que isso fique claro e dito

Queéclaro que tenho dito

escrito teclado

tenho dito

algumas
palavras
plurais

apenas.



***



6.



A ciência do mexer de quem mexe é ciência que ainda não domino.

É uma estratégia ou uma guerrilha?

Seria um jogo de domínio

Ou dominó?

A palavra quando se lança fere muda

mas quando mexe

qual a química que se me nos atravessa?

Tento não sair de casa, mas a impressão é de que ainda mexe mesmo assim: uma lixeira, em cima da pia, com uma garrafa apontada numa direção.

Um descanso no olho e tá a garrafa apontada pra um lado completamente diferente.

Ou seja, garrafa de um lado e de outro mudando de uma

hora pra outra.

Ou isso ou coisa da minha cabeça

Todas as opções existem independentemente do que eu ache ou sinta.

A pergunta que persiste

e parece absurda abstrata é

Como

Tudo isto é possível?

Por que isso me domina?

O café de grão e o sono improvável impossível

me faz duvidar de que eu, assim como quem não quer nada,

esteja são de tudo que

não

poderia não

não acontecer

Será que alguém mexe mesmo? Me pergunto questionando se eu sei o que sei e o que vejo. Dezdentão já tinha me falado que isto é coisa da minha cabeça. Polaco ainda não, pelo menos não com todas suas palavras, letras e sotaques,

de qualquer forma,

parecia não crer

em mim.

E eu?

O que achava eu do que tudo isso é pra se achar?

Percebi, aos poucos,

que tudo isso era uma coisa de olho.

Era preciso de um aprendizado de olho.

exercício da vida do nervo do olho.

Aprender a olhar, talvez, não como o

olho

olha,

mas como a vida olha.

Um jeito meio torto de dizer que é preciso tentar viver.

Imagine uma flecha de índio apontada em pedra de rio no meu olho direito e tocando, de leve, meu cérebro, cutucando minha massa encefálica a ponto de me fazer ter um formigamento no cérebro e uma cosquinha constante.

Imagine isto, essa dor

uma cena grotesca com sangue em que ganho um tapa

olho de pirata

e que,

por causa desse tapa olho

e do pirata em mim

eu podia de novo mais uma vez olhar.

O nervo óptico

nervoso de exercício em excesso

de nervuras que aprendem

como no trajeto de um rio senil mas obediente

acaba por desenvolver a tarefa sutil e incansável tarefa de olhar.



Basta acordar que olha.

E andar que olha.

E tropeçar que olha.

Olhar é uma tarefa da cabeça,

não do olho nem do pirata.

Olhar é sinuca e é bico.

e eu precisava aprender.

Mas como oh god oh fuck

se meu horizonte eram janelas acima abaixo lado um lado dois

e meu horizonte. Já falei do meu horizonte?

já? Se reduzia a um chokito derretido de céu

e ardósia de chão?

Então, numa sinapse nervosa

benditos nervos

eu entendi:

eu preciso olhar gente.



outras gentes.



***



13.



Adivinhei o gosto do café antes de prová-lo. Senti que o que tinha nele era mais do que cafeína, era grão. O gosto não coube direito dentro do meu pensamento, mas imaginei que o sabor não tinha nada a ver com isso também. Café de grão.

Descobri que teria que sair hoje.



Nadia.

Quantas noites não fui dormir pensando em Nadia?

Quantas noites não acordei pensando em Nadia?

Nenhuma.



Nadia

Pra mim

Não era como algo

Que existe.



Ela era uma aparição

Uma fantasmagoria

Um ser sensório de outro mundo

De lá pra cá pra mim



A primeira vez que eu vi Nadia

Foi pela fresta de um telhado

Um cano que explodiu na casa vizinha fez metade do teto voar

E Nadia, nua, em seu quarto ficou exposta pela fresta

18 anos de Nadia

Já tinha ganhado a chave de casa

Uma festa pra sociedade

Já pensava em fazer sexo

Já praticava sexo sozinha

Mas nunca tinha sido vista assim como eu vi:

Sua vista era a de uma moça desesperada, nua, exilada de uma cama de

uma casa em que

um cano explode.



A minha não, a minha era outra.

Era alguma coisa que saía de dentro e ia pra fora

Alguma coisa que ultrapassava a barreira do corpo e explodia

Como um balão que se desprende do ar

Como um pau que cospe esperma

Como uma mãe que expele um bebê:

Aquela era Nadia pra mim, um ser que passou a existir no mundo

E só por existir e por haver mundo

Já havia mudado a forma como meu corpo mexia

Como alguém

Que mexe

Por profissão.



Eu era o cano que explodia

também.



Depois disso,

Descobri que Nadia seria importante para mim

E Nadia poderia ser importante para mim

Tudo devia ser supérfluo

Tudo devia ser passageiro

Tudo devia ir

Mesmo que ruim

Ir

Ru

Ir



Então comecei a sistematicamente ignorar Nadia como ela me ignorava.

Era meu exercício diário de desamar

De desabar

De desembarcar

De recriar

O amor não pode ser esse negócio que a gente sente quando o cano explode e uma moça aparece pelada.

O amor não pode ser essa banalidade, essa coisa mosca morta, fraca e débil.

O amor tem que ser translúcido, ele tem que ser irreal.

O amor é quase como se eu pudesse ter a capacidade de ver Nadia

Por entre as paredes antes do cano explodir

Antes dela nua

Exposta.



O amor é isso:

Essa parede que existe entre duas pessoas

Para sempre

Inevitável

Irremovível

Eterna

Mas que,

Apesar disso

É absolutamente translúcida

E os dons se veem

E, por vezes,

Quando dá

Se tocam.



Nadia não podia me ver

Eu vira Nadia demais.

Eis o fim

Entre mim

E Nadia mais.



Por isso que adivinhar o gosto do café

O grão

O cheiro

Ao invés de reclamar como o polaco

Me aproxima de uma coisa que não sei

Que não tenho conhecimento

Mas que faz todo sentido que

Pelo menos no pensamento

Se chame amor.



***



17.



Será que é a mesma pessoa que faz isso, pensei um dia, sem saber por quê.

Pode ser: quem mexe some quem some mexe

Eu acho.



A diferença entre mexe e some

É que quando mexe fica

E quando some vai

Dois lados da mesma coisa:

Ficar significa que ainda tem mesmo que em outro lugar

Sumir significa ir pra outro lugar que não sei onde, mas que ainda assim existe indefinido.



Mas some também é somar, some aí 2 + 2:

Some o 2 e o 2 e aparece o 4:

Somar é sumir com um

Sumir é só sumir, mas manter um.



Se todo resultado de uma soma é um

E toda vez que some fica um onde não sei



Mexer, sumir e somar é a mesma coisa

As três pra mim

Como sofrimento de novela

No conjugado quadrado linguiça de quem espera

Que alguém venha

Algum dia.



Acontece, embora não aconteça,

O problema

É que sempre

É a pra pior."

Literatura Brasileira

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