"Me empanturrei hoje e nem comida em casa tinha.
Realmente estava tudo quadrado e menor, talvez porque mais quente, talvez porque mais realmente geométrico.
Da janela via um velho pesado
pelado
peludo
polaco
Que sempre me dizia que “a vida é muito Sérvia”.
E eu concordava pra não contrariar
Mesmo achando a vida bem mais um Montenegro.
Eu tinha alguns motivos para desconfiar de tudo:
Meu filtro pingava no contratempo do relógio,
Um calo latejava no ritmo do coração,
E o estômago roncava dodecafonicamente como era sua vontade.
Fazia um tempo que eu não saía de casa.
Decidi desde que descobri uma parada
que acontecia deste lado da porta de casa.
Além de uns destilados que engrossavam minha língua.
Mas eu não entendia muito bem o que acontecia
Não sabia se era
Uma suspeita.
Não tinha ideia
Se era
Uma afronta
Não tinha ideia
Se era
Uma loucura
Se era não sei
O que acontecia comigo.
Ah, e não vamos falar de culpa
Porque culpa eu não tenho eu não tive eu não terei eu nem pensei em ter culpa em nada disso
Nem ela
ela?
Não.
Não há culpa nessa parada que eu descobri
Que isso fique claro e dito
Queéclaro que tenho dito
escrito teclado
tenho dito
algumas
palavras
plurais
apenas.
***
6.
A ciência do mexer de quem mexe é ciência que ainda não domino.
É uma estratégia ou uma guerrilha?
Seria um jogo de domínio
Ou dominó?
A palavra quando se lança fere muda
mas quando mexe
qual a química que se me nos atravessa?
Tento não sair de casa, mas a impressão é de que ainda mexe mesmo assim: uma lixeira, em cima da pia, com uma garrafa apontada numa direção.
Um descanso no olho e tá a garrafa apontada pra um lado completamente diferente.
Ou seja, garrafa de um lado e de outro mudando de uma
hora pra outra.
Ou isso ou coisa da minha cabeça
Todas as opções existem independentemente do que eu ache ou sinta.
A pergunta que persiste
e parece absurda abstrata é
Como
Tudo isto é possível?
Por que isso me domina?
O café de grão e o sono improvável impossível
me faz duvidar de que eu, assim como quem não quer nada,
esteja são de tudo que
não
poderia não
não acontecer
Será que alguém mexe mesmo? Me pergunto questionando se eu sei o que sei e o que vejo. Dezdentão já tinha me falado que isto é coisa da minha cabeça. Polaco ainda não, pelo menos não com todas suas palavras, letras e sotaques,
de qualquer forma,
parecia não crer
em mim.
E eu?
O que achava eu do que tudo isso é pra se achar?
Percebi, aos poucos,
que tudo isso era uma coisa de olho.
Era preciso de um aprendizado de olho.
exercício da vida do nervo do olho.
Aprender a olhar, talvez, não como o
olho
olha,
mas como a vida olha.
Um jeito meio torto de dizer que é preciso tentar viver.
Imagine uma flecha de índio apontada em pedra de rio no meu olho direito e tocando, de leve, meu cérebro, cutucando minha massa encefálica a ponto de me fazer ter um formigamento no cérebro e uma cosquinha constante.
Imagine isto, essa dor
uma cena grotesca com sangue em que ganho um tapa
olho de pirata
e que,
por causa desse tapa olho
e do pirata em mim
eu podia de novo mais uma vez olhar.
O nervo óptico
nervoso de exercício em excesso
de nervuras que aprendem
como no trajeto de um rio senil mas obediente
acaba por desenvolver a tarefa sutil e incansável tarefa de olhar.
Basta acordar que olha.
E andar que olha.
E tropeçar que olha.
Olhar é uma tarefa da cabeça,
não do olho nem do pirata.
Olhar é sinuca e é bico.
e eu precisava aprender.
Mas como oh god oh fuck
se meu horizonte eram janelas acima abaixo lado um lado dois
e meu horizonte. Já falei do meu horizonte?
já? Se reduzia a um chokito derretido de céu
e ardósia de chão?
Então, numa sinapse nervosa
benditos nervos
eu entendi:
eu preciso olhar gente.
outras gentes.
***
13.
Adivinhei o gosto do café antes de prová-lo. Senti que o que tinha nele era mais do que cafeína, era grão. O gosto não coube direito dentro do meu pensamento, mas imaginei que o sabor não tinha nada a ver com isso também. Café de grão.
Descobri que teria que sair hoje.
Nadia.
Quantas noites não fui dormir pensando em Nadia?
Quantas noites não acordei pensando em Nadia?
Nenhuma.
Nadia
Pra mim
Não era como algo
Que existe.
Ela era uma aparição
Uma fantasmagoria
Um ser sensório de outro mundo
De lá pra cá pra mim
A primeira vez que eu vi Nadia
Foi pela fresta de um telhado
Um cano que explodiu na casa vizinha fez metade do teto voar
E Nadia, nua, em seu quarto ficou exposta pela fresta
18 anos de Nadia
Já tinha ganhado a chave de casa
Uma festa pra sociedade
Já pensava em fazer sexo
Já praticava sexo sozinha
Mas nunca tinha sido vista assim como eu vi:
Sua vista era a de uma moça desesperada, nua, exilada de uma cama de
uma casa em que
um cano explode.
A minha não, a minha era outra.
Era alguma coisa que saía de dentro e ia pra fora
Alguma coisa que ultrapassava a barreira do corpo e explodia
Como um balão que se desprende do ar
Como um pau que cospe esperma
Como uma mãe que expele um bebê:
Aquela era Nadia pra mim, um ser que passou a existir no mundo
E só por existir e por haver mundo
Já havia mudado a forma como meu corpo mexia
Como alguém
Que mexe
Por profissão.
Eu era o cano que explodia
também.
Depois disso,
Descobri que Nadia seria importante para mim
E Nadia poderia ser importante para mim
Tudo devia ser supérfluo
Tudo devia ser passageiro
Tudo devia ir
Mesmo que ruim
Ir
Ru
Ir
Então comecei a sistematicamente ignorar Nadia como ela me ignorava.
Era meu exercício diário de desamar
De desabar
De desembarcar
De recriar
O amor não pode ser esse negócio que a gente sente quando o cano explode e uma moça aparece pelada.
O amor não pode ser essa banalidade, essa coisa mosca morta, fraca e débil.
O amor tem que ser translúcido, ele tem que ser irreal.
O amor é quase como se eu pudesse ter a capacidade de ver Nadia
Por entre as paredes antes do cano explodir
Antes dela nua
Exposta.
O amor é isso:
Essa parede que existe entre duas pessoas
Para sempre
Inevitável
Irremovível
Eterna
Mas que,
Apesar disso
É absolutamente translúcida
E os dons se veem
E, por vezes,
Quando dá
Se tocam.
Nadia não podia me ver
Eu vira Nadia demais.
Eis o fim
Entre mim
E Nadia mais.
Por isso que adivinhar o gosto do café
O grão
O cheiro
Ao invés de reclamar como o polaco
Me aproxima de uma coisa que não sei
Que não tenho conhecimento
Mas que faz todo sentido que
Pelo menos no pensamento
Se chame amor.
***
17.
Será que é a mesma pessoa que faz isso, pensei um dia, sem saber por quê.
Pode ser: quem mexe some quem some mexe
Eu acho.
A diferença entre mexe e some
É que quando mexe fica
E quando some vai
Dois lados da mesma coisa:
Ficar significa que ainda tem mesmo que em outro lugar
Sumir significa ir pra outro lugar que não sei onde, mas que ainda assim existe indefinido.
Mas some também é somar, some aí 2 + 2:
Some o 2 e o 2 e aparece o 4:
Somar é sumir com um
Sumir é só sumir, mas manter um.
Se todo resultado de uma soma é um
E toda vez que some fica um onde não sei
Mexer, sumir e somar é a mesma coisa
As três pra mim
Como sofrimento de novela
No conjugado quadrado linguiça de quem espera
Que alguém venha
Algum dia.
Acontece, embora não aconteça,
O problema
É que sempre
É a pra pior."
Literatura Brasileira