Denunciações da Bahia

Denunciações da Bahia Antonio Fontoura


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Denunciações da Bahia


Denúncias feitas ao Santo Ofício em Salvador em 1618




“Lhe mostrara o dito Gaspar Fernandes uma negra sua da Guiné, sua cativa, dizendo que lhe falava o Diabo no peito, e dava respostas até de coisas futuras; e que aí mesmo havia um preto, também de Guiné, de cujo nome não estava bem lembrado, que adivinhava os futuros que se faziam, e fazia com que o Diabo desse respostas em uma joeira, e que ia buscar os negros fugidos ao mato com certa coisa que o encaminhava para onde ele estavam.”

A presença de rituais trazidos pelos africanos escravizados, as trocas culturais que se estabeleciam com os cristãos de Salvador de 1618, e as reações da Igreja Católica contra práticas religiosas vistas com feitiçarias, deixam-se vislumbrar por este trecho do depoimento de Simão Vieira, irmão no Colégio dos Jesuítas. Não era ele o único a se escandalizar com as práticas religiosas dos “Negros da Guiné”. Para o lavrador Simeão de Góes “era muito [o] escândalo nestas partes o abuso dos negros de Guiné”:

“chamando os mortos, orando, que não podem entrar no céu sem lhe fazerem aquele Ofício, lançando sangue da coisa que matam no vinho, e tangendo e cantando, e comendo e bebendo com grande excesso e muito ajuntamento de gente preta de seus feiticeiros; do que podem ser testemunhas todos os homens que nesta Bahia servem dos ditos escravos de Guiné”.

O mais intrigante, de um ponto de vista dos estudos históricos, é que boa parte destes depoimentos, que aparecem aqui em forma de denúncias, são inéditos. Detalhes do contato cultural dos africanos escravizados, as tensões entre cristãos com os “da Nação” (os descendentes de judeus) em um momento de intensificação da perseguição inquisitorial aos judeus, as várias relações de sociabilidade que sustentavam a sociedade colonial de Salvador em 1618: informações fundamentais para se conhecer o passado do Brasil estavam, até agora, inéditas.

Pode-se argumentar que esse ineditismo é relativo: afinal, os documentos estão à disposição nos arquivos da Torre do Tombo. É verdade: mas, ao que tudo indica, boa parte deste material jamais foi utilizado em pesquisas históricas. Apenas uma parte já havia sido publicada, em 1936, por Rodolfo Garcia, nos Anais da Biblioteca Nacional.

Nas visitações da Inquisição, três procedimentos ocorriam mais ou menos simultaneamente. A princípio ocorriam as Confissões (em que as pessoas eram incentivadas a confessar os próprios erros, em busca de uma mais branda punição do Santo Ofício) em conjunto com as Denunciações (quando se denunciava erros cometidos por outros). Após realizado certo número de Confissões e Denunciações, iniciavam-se as Ratificações, que buscavam confirmar testemunhos e buscar novas informações.

Confissões e Denunciações usualmente se complementam: é bastante comum, como será visto nas notas deste livro, que uma pessoa desconfiada de que fora denunciada, antecipe-se e se confesse, visando reduzir a sua pena. Há um diálogo de versões muito rico nestes casos.

Mas as Denunciações têm, também, uma riqueza que lhes é própria: em geral, envolvem um número bastante grande de pessoas, além de revelar detalhes mais ricos sobre os comportamentos eram vistos a partir de um terceiro ponto de vista. São as percepções de quem está testemunhando, registrando, avaliando, julgando.

A metáfora da “janela para o passado” é tão antiga quando a própria história. Ela se encaixaria muito bem aqui. E não precisaria de grandes argumentos para convencer leitores e leitoras disso. Bastaria convidá-los para ler a primeira denúncia, de Melchior de Bragança: ex-judeu, professor de Hebreu, tão necessitado de dinheiro quanto o era de ser reconhecido por todos como um verdadeiro cristão, denuncia a tantos quanto acreditava serem secretamente judeus. Em uma época de elevação das tensões entre cristãos velhos e cristãos novos além de perseguição aos “criptojudeus”, o depoimento de Melchior mostra o quanto era complicado viver em Salvador em 1618.

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