Diário 366

Diário 366 Bruno Novaes


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Diário 366 (01 #01)


Bruno Novaes




A cada ano, calendários, diários e agendas tem as suas páginas preenchidas com registros e documentações dos dias. Os diários, mais especificamente, são retratos não só dos fatos banais – e dos ocasionais eventos excepcionais –, mas também fiéis depositários de profundas confissões, afetos e angústias, das impressões e dos desejos íntimos de alguém. Cada entrada configura um relato híbrido entre fato e percepção, veracidade e ficção, revelando de maneira premente (e não-mediada) o ponto de vista do autor. Sua natureza intimista, confessional, e até sigilosa, talvez seja também um pouco narcisista, já que estrutura-se em primeira pessoa; sua linguagem principal é a escrita; e sua fruição é, quase sempre, destinada apenas a quem o escreve – uma narrativa sem filtro e sem necessidade de edição, aproximada da carne da vivência individual. É, ao mesmo tempo, a materialização de muitas vozes internas que, em público, silenciamos em favor da boa convivência, da civilidade e da educação, mas que podem ser livremente derramadas no papel sem medo das contradições, incoerências e, quiçá, ilusões inerentes à perspectiva de ponto singular. Assim, ler um diário alheio pode ser o mais próximo que podemos chegar de ver o mundo pelos olhos de outra pessoa.

No ano bissexto de 2016, Bruno Novaes se propôs a construir um diário à sua maneira, registrando diariamente a data corrente por meio de desenhos, aquarelas, fotografias, colagens, costuras ou intervenções que experimentassem com o formato e o papel. Fugindo da convencional escrita confessional, realizou um exercício poético-simbólico de anotação diurnal por meio de imagens, explorando noções e interpretações ampliadas do diário como ferramenta do conhecimento de si (e, mais tarde, do outro). Ao concluir esse processo, digitalizou todas as páginas produzidas e transformou-as em cartões postais impressos – uma coleção de 366 fichas diferentes. Essa operação configurou-se como uma primeira subversão: o artista converteu seu diário pessoal em algo cuja função primordial é circular abertamente entre pessoas. Mesmo que o postal se preste também à escrita, não estamos mais lidando com uma esfera confidencial, e sim uma dimensão pública – sem envelopes, postais circulam sendo lidos livremente por qualquer um que os manipule.

É a partir dessa condição dialógica do material postal que Novaes, então, passou a realizar um extenso processo de trocas e construção coletiva que perverteu ainda mais o intimismo e o sigilo em favor de uma esfera compartilhada. Durante os quatro anos seguintes (entre 2017 e 2020), pela internet, operou uma espécie de escambo: quem desejasse participar do projeto, elegia uma data e, se disponível, recebia pelo correio o postal referente àquele dia, sem saber o conteúdo da imagem. Em troca, uma vez que recebesse o cartão, enviava de volta uma resposta relativa à sua escolha. Movidos por associações afetivas, por feriados e datas comemorativas, por eventos políticos relevantes ou predileções aleatórias, os participantes passaram a integrar uma rede pública de transações íntimas, uma cadeia ampla e espontânea de confidências entre conhecidos e desconhecidos. As respostas vieram nos mais variados formatos: centenas de textos, cartas, bilhetes, fotografias, desenhos, objetos e peças foram remetidos ao artista até o final de 2020 (também bissexto), quando as trocas se encerraram.

Com todo este acervo acumulado, a última etapa do projeto consistiu na organização desta exposição na qual se exibem todas as páginas originais do diário, dispostas a formar um grande calendário, junto de todas as devolutivas de quem se envolveu nesse intercâmbio. Incidentalmente, porém, a mostra também foi ressignificada ao ser realizada hoje, em meio à pandemia, depois de mais de um ano de vais-e-vens de isolamento, restrição e quarentena, que mudaram tanto a nossa relação com o calendário. De um ano para cá, os dias e as horas parecem-se uns com os outros, sempre os mesmos, enquanto também passam demasiadamente acelerados, e o tempo nos escapa.

Assim, abrem-se aqui todas páginas do que um dia foi o ano de 2016 na vida de Bruno Novaes, agora acompanhadas por este acervo coletivo construído por muitas pessoas, muitas histórias e muitos lugares. O conjunto se apresenta como uma versão dupla e ampliada do diário, contando a história de um passado ano de um dia a mais, em um ano no qual os dias parecem não passar.

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