Tudo se passa em clima normal de cotidiano, o que aumenta a carga de crueldade. Houve, numa sessão de tortura, um acidente de trabalho que é preciso corrigir a todo custo, para não comprometer a imagem do sistema. O menos inverossímil é transformar a morte em suicídio, depois de uni-lo a um novo assassínio, para que o quadro adquira outras características de veracidade.
Os episódios se sucedem com lógica implacável. A eficiência se desdobra nas mais variadas medidas, desde a utilização de tipos diferentes de máquinas para o comunicado à imprensa e a redação do laudo médico, até a lembrança de um pormenor anatômico dos suicidas. As providências se encadeiam com o objetivo de não deixar aberta nenhuma dúvida suspeita. Excetuado o erro de se fabricar um "material irrecuperável", tudo o mais se torna perfeito.
Mario Prata revela uma lucidez surpreendente, em todas as implicações de sua trama. Do psicológico ao social e ao político, "Fábrica de chocolate" não deixa desguarnecida nenhuma frente. Ele evitou pintar monstros patológicos, às voltas com taras incontroláveis. Se foi lamentável o acidente, inclusive porque impediu o responsável de assistir à partida decisiva de futebol, a máquina repressora é acionada para restabelecer a ordem. Os funcionários exemplares dominam a ciência de oferecer uma versão oficial indiscutível, assegurando até a cumplicidade do industrial, de quem, aliás, se definem como os delegados práticos nas tarefas menos nobres. Denuncia-se a completa solidariedade dos vários segmentos da população opressora, quando o poder se sustenta pela força e pelo arbítrio.
"Fábrica de chocolate é um desafio para todos. É um desafio porque nos obriga a encarar frontalmente um tema que até há bem pouco tempo era tabu em letra de forma e se falava apenas à meia-voz, olhando em volta pelo canto do olho: a tortura." (Ruy Guerra)