No início dos anos trinta, Cornélio Penna era um artista plástico, cujo traço expressionista-goticizante ilustrava, em diversos livros e revistas, a literatura de amigos. Resolvendo lançar-se a aventura mais complexa, publicou, em 1935, o volume Fronteira, onde deixou a marca de sua estilização, instigantemente insólita, no texto e nos desenhos.
A narrativa, em primeira pessoa, apresenta o tom introspectivo e a sequência descontínua de um diário. Este é atribuído a uma personagem anônima, identificada apenas como parente, que retorna, anos depois, ao velho casarão familiar. Lá, testemunha a trama inesperada de certa Tia Emiliana, cujo comportamento diabólico e devoto induz a dona da casa, Maria Santa, a jejuar, imobilizar-se e deixar-se venerar como produtora de milagres. Perplexo e fascinado pelo processo de santificação de sua amiga, o narrador busca, ao mesmo tempo, decifrar a causa de seus próprios remorsos angustiantes.
São, justamente, sentimentos de fascínio e perplexidade, que o romance desencadeia, no leitor. Da mesma forma que o visitante, vindo da claridade da rua, precisa de alguns minutos para acostumar-se à penumbra dos enormes cômodos da casa, também a leitura do relato se arrasta pelas primeiras páginas, quando se luta para compreender a narração sugestiva e oblíqua. Daí em diante, é impossível fechar o livro. Os enigmas do enredo empurram os olhos ao longo das linhas; a ambiguidade das personagens atrai a atenção com força igual à do milagre. A tomada de contato com o texto e as ilustrações do romance corresponde a um momento de choque, vivido na companhia do narrador, sempre oscilante entre o bom senso e a loucura. Enquanto os capítulos vão sendo devorados, inveja-se a posição das personagens secundárias, que, servindo de duplo a esse narrador-testemunha, são conduzidas à fronteira, onde o saber se revela como experiência de vertigem.
Literatura Brasileira / Romance / Ficção