História e Razão em Tucídides

História e Razão em Tucídides Jacqueline de Romilly


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História e Razão em Tucídides





Tucídides se afastou da fé de Heródoto nos deuses. Não se trata de uma antítese absoluta; porque neste caso deveriam novamente ter sido valorizados os antigos conceitos em torno dos deuses que Heródoto rejeitara. Mas Tucídides estava, de sua parte, compenetrado pelas idéias difundidas a que os poetas haviam dado expressão, pelas quais a crença nos deuses fora limitada ou destruída. Ele admitia mesmo assim um elemento divino nas coisas humanas, lamentava que as mentes não se unissem para preservarem as leis divinas, mas apenas para as infringirem. Fala em termos desaprovadores da atenuação sempre maior do sentimento religioso. Mas no que respeita à concepção da participação direta dos numes nas coisas humanas, não se encontra nele qualquer traço. Não nega, é verdade, diretamente os oráculos, e introduz alguns assuntos que poderiam talvez confirmar os vaticínios, mas sua atitude em tais casos é sempre cética. Se, por exemplo, a propósito de um terremoto ocorrido na Lacedemônia, atribui sua causa à ofensa cometida contra o asilo onde se haviam refugiado os hilotas, ele o refere, mas sem com isso minimamente indicar que concorda com tal opinião. Ele, de fato, não ficara insensível às novas teorias científicas a respeito da natureza. Lembra com certa ironia o entendimento dos liparianos que a forja de Hefesto ficava em sua ilha; há uma concepção totalmente diversa da fumaça que eles vêem elevar-se durante o dia, e do fogo que jorra durante a noite. Se, em algum lugar, as manifestações da natureza exercem influência sobre as determinações tomadas pelos homens, ele dá mostras de sua desaprovação. É característica a sua atitude em relação a afirmativa de que foi emitido um anátema contra quem tivesse usado para suas habitações o dito Pelásgico de Atenas. Quando, mais tarde, quiseram atribuir os infortúnios ao fato de não terem dado valor àquela maldição, ele não compartilha essa opinião, antes afirma que tudo se reduzia ao fato de que aquele lugar era insalubre para seus habitantes. O verdadeiro avanço de Tucídides pode consistir nisto: ele capta o motivo histórico nas atitudes morais da natureza humana. Não devemos, a este respeito, utilizar os ditos de seus discursos, uma vez que estes foram redigidos em conformidade com o carater daquele que ele dá por orador. Todavia, por vezes ele mesmo se faz ouvir enquanto observador das vicissitudes humanas: a natureza humana assim dispõe; esses são dominados pelas próprias paixões, desprezam o justo e não suportam que outros os sobrepujem; outro mal é a tentação e o furor da vingança. Ele discerne na ampliação dos poderes dos homens ambiciosos a causa donde provêm todas as desordens na cidade; em geral não passam de pretextos quando se fala das vantagens de uma aristocracia moderada ou de uma isegoria democrática: tem-se em mente apenas sobrepujar os adversários; a fama da virtude possui valor menor do que a astúcia habilidosa. Os infortúnios, de um lado, as complicações bélicas, de outro, liberam tudo isto abrindo a via a novos males. O próprio homem, especialmente por seus sofrimentos e seus erros, constitui o ponto central da história de Tucídides. Ele se contrapõe nisto a Heródoto do mesmo modo que Eurípides a Sófocles, e ainda mais face a Ésquilo. Mas nele a distancia se justifica mais do que em Eurípides: porque a tragédia não pode ser imaginada desprovida da ficção poética, mas a história tem por objeto justamente o homem; Uma de suas condições imanentes é aquele de buscar apreender, de compreender e tornar inteligível as vicissitudes humanas como elas são. Tucídides abstrai-se de qualquer lenda e ficção. Numa passagem atribui valor especial ao ter buscado investigar os acontecimentos assim como eles aconteceram. O maravilhoso, prezado por Heródoto, aqui desaparece completamente face aos simples dados dos fatos; Na narrativa, Tucídides por vezes lhe dá o tom de uma simples crônica; impressiona pela confiança e pela inteligência. Se deve a segurança aos lacedemônios, por quem a pode desfrutar, não se poderia, entretanto, dizer que ele laconiza. Seu talento inato está justamente no fato de julgar com eqüidade as duas partes. Atendo-se aos simples fatos, apenas aprofundando as motivações humanas, ele conferiu à sua história, no curto período contemplado, aquele apreço de lucidez e de plena evidência que admiramos. A narração de Tucídides é totalmente analítica; ele preza particularmente a cronologia precisa. Em seus verões e invernos inclui acontecimentos que outros poderiam achar insignificantes; porque seu propósito é o de assinalar tudo que aconteceu. Mas nisto está inserido um desenvolvimento que por vezes ele põe em relevo, de modo que a atenção do leitor permanece sempre, simultaneamente, voltada para o geral. A estima da narração sobe e desce com os acontecimentos. Ora descreve todos os motins políticos e discussões inerentes à dissensão entre Argos e a Lacedemônia bem minuciosamente, tanto que, justo por isto, eles não podem despertar que um interesse moderado. Mas eis a batalha de Mantinéia. Tucídides a descreve relativamente aos costumes lacedemônios e à sua perícia bélica: ao indicar o ponto sobre o qual adverte de não estar perfeitamente seguro, reforça a confiança naquilo que narra. Põe em relevo então especialmente a conduta de cada unidade de divisão e de cada grupo de povos que ali atuaram, sem todavia perder a atenção. A batalha é descrita de modo insuperável, clara mesmo até nas complicações. Até mesmo o rei espartano, que quis refutar as reprovações que lhe eram dirigidas por causa de sua conduta anterior, pelo ímpeto do avanço, e então com sua improvisada prudência e, por fim, pela disposição em relação à batalha, compõe figura notável na história militar. A imparcialidade induz justamente à objetividade. Para Heródoto isto teria resultado difícil, uma vez que os deuses dispõem de uma participação excessiva. Tucídides ressalta a ação humana em si mesma, se bem que não omita na narração como se deu o retorno do exército lacedemônio para casa apenas porque no fim obtivera signos favoráveis pelos sacrifícios.

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