Pandora 27/01/2022
"Bestiário" foi meu primeiro encontro com a escrita de Julio Cortázar e me encontro bastante impactada. O livro trata-se de uma coletânea de oito contos é de leitura fácil e prazerosa, demorei uma semana lendo por ter optado por ler um conto por dia, mas basta uma tarde preguiçosa ou uma noite livre para da conta da leitura desse livro absurdamente gostoso.
Para mim um bom conto não precisa ser curto ou longo, um bom conto precisa saber fisgar a atenção nas primeiras linhas criando uma atmosfera de tensão que nos faça avançar rapidamente para o último paragrafo, pois o conto é um texto para ser lido em um folego só. Então, dentro dos meus parâmetros, todos os contos de "Bestiário" são perfeitos, carregados não só da tensão primordial como de mistério e com altas doses de fantasia ou o famoso "realismo fantástico" associado aos autores e autoras da América Latina.
Reza a lenda ser "Casa Tomada", o primeiro conto do livro, é o conto mais famoso de Cortázar. Nele se conta a história de como um casal de irmãos foram expulsos de sua casa lentamente por uma horda de desconhecidos que lentamente vão ocupando vão a vão da casa até os irmãos simplesmente irem embora. O narrador desse conto é o irmão, ele começa dizendo:
"Nós gostávamos da casa porque além de espaçosa e antiga (hoje que as casas antigas sucumbe ante a proveitosa venda dos seus materiais) guardava as lembranças dos nossos bisavôs, do avô paterno, dos nossos pais e de toda a infância."
E mesmo com todo gostar eles simplesmente se entregam passivamente ao processo de afastamento desse lar de lembranças. Assisti absurdada a esse processo de expulsão dos irmãos de seu lar ancestral e terminei me perguntando se nós nos Brasil não estamos vivendo algo parecido nessa era de Fascismo, perdemos o hino nacional, a bandeira, a presidência ocupada por um monstro, tenho a impressão de que só tem ficado no Brasil quem não pode sai ou quem tem convicções muito fortes.
O tom de suspense, mistério, tensão, pitadas de terror e realismo fantástico do primeiro conto se alastra por todos os outros contos. Em "Carta a uma senhorita em Paris" lemos a correspondência enviada a Srta. Andrée que emprestou seu apartamento em Paria a um amigo e descobre nessa missiva como seu apartamento foi destruído por coelhinhos. Parece louco, é louco, mas de muitas formas tantas coisas que o amigo da Andrée escreve na carta tanto fez sentido como me emocionou e cativou.
"Os costumes, Andrée, são formas concretas de ritmo, são a dose de ritmo que nos ajuda a viver. Não era tão terrível vomitar coelhinhos depois de ter entrado no ciclo invariável, no método."
Em "Longínqua" acompanhamos os registros do diário de uma moça prestes a casar, os diálogos verbais e não verbais com os sogros, o futuro marido, as coisas acontecendo... os anseios da noiva e as vezes o incompreensível é até compreensível demais. Em "Ônibus" a aventura de Clara que ao entrar no ônibus se vê no centro da incomoda atenção de todos e todas sem saber qual a motivação dos olhares, eles só ativam nela o senso de perigo. Tanto "Longínqua" quando "Ônibus" tencionaram os fios da minha emoção.
De todos os contos "Cefaleia" foi o que mais me deixou na incompreensão. Já "Circe" e "As portas do céu" foram os de mais fácil compreensão. Em "Circe" acompanhei a experiência de um rapaz que é o terceiro noivo de uma moça, os outros dois morreram pouco antes do casamento. O conto beira o terror, tem doses de humor, o final me deixou de boca aberta. Em "As portas do céu" é animado por uma estranha paixão, nele encontrei um homem enlutado pela perda da esposa de um amigo com a qual ele não tinha um caso, não é um conto sobre adultério, é um conto sobre a noite, a boemia, os habitantes da noite e sobre Celina, uma mulher cheia de alegria, feita da noite, da liberdade, de tango, me fez pensar se talvez, quem sabe, a morte não baste para impedir o correr da existência de pessoas assim
"Nada a prendia agora, num céu só dela, se entregava à felicidade de corpo e alma e entrava de novo na ordem onde Mauro não podia segui-la. Era seu duro céu conquistado, seu tango tocado só para ela e seus iguais, até o aplauso de vidro quebrado que fechou o refrão de Anita, Celina de costas, Celina de perfil, outros casais contra ela e a fumaça."
O último conto, "Bestiário", responsável por da nome ao livro aborda a implacabilidade da visão das crianças quando em estado de fim de infância. É sensacional a abordagem das estruturas familiares, das suas falhas, da forma como os adultos as vezes se dão ao luxo de usar crianças como se fossem brinquedos, de como as crianças percebem as rachaduras das estruturas como ninguém e podem tecer ardis para encurralar pessoas com as quais antagonizam agindo como anjos vingadores de suas pessoas amadas.
Esse é um livro de contos redondo, gostoso, instigante. Desafia nosso limite de compressão ao contar histórias com elementos fantásticos abordando a realidade por metáforas. Ele não se esgota na primeira leitura, assim que fechei a ultima página fui atrás de textos de outros leitores e leitoras e não resisti a também escrever o meu com minhas inquietações. Pretendo ler mais desse argentino capaz de falar da vida real em tons tão fantásticos.
site: https://elfpandora.blogspot.com/2022/01/bestiario-de-julio-cortazar.html