Luigi.Schinzari 07/08/2020
Sobre As Relações Perigosas, de Choderlos de Laclos
Romances epistolares tendem a ser intrigantes. Obras como Gente Pobre de Dostoiévski, A Nova Heloísa de Rousseau, Drácula de Bram Stoker e tantas outras são um aprofundamento, por conta de sua narrativa fragmentada em cartas de diversos autores para diversos interlocutores, na mente das personagens muito específico: vemos não necessariamente seus pensamentos, mas sim sua aparência e, vendo por outros ângulos (lê-se: outras cartas), notamos suas verdadeiras intenções e real caráter quando combatida com as lidas anteriormente; nota-se hipocrisia, arroubos heroicos e tantas outras peças que formam um humano qualquer; e não há obra epistolar que se utilize tão bem desse artifício e de suas vantagens para contar uma boa e intrigante história quanto As Relações Perigosas (Les Liaisons Dangereuses, no original), do francês Pierre Choderlos de Laclos (1741-1803) e publicada em 1782.
No livro, acompanhamos as conversas travadas entre um círculo aristocrático francês pré-revolucionário e todos os mexericos e relações conectadas entre esse povo. Nas cartas, vemos doses cavalares de adultério, libertinagem e artimanhas para prejudicar ou arrendar em uma armadilha social seus conhecidos; e como choca presenciar o veneno tecido nas linhas das personagens e a corrupção de boas almas como a virginal Cécile de Volanges pelos manipuladores Visconde de Valmot e Marquesa de Merteuil. Tanto abala o leitor que o romance foi uma hecatombe em sua época: polêmicas, censura; e mesmo assim todos queriam ler As Relações Perigosas de Choderlos. Até mesmo Maria Antonieta tinha um exemplar em sua coleção!
Enquanto acompanhamos aquele círculo por seis meses, Choderlos de Laclos prova sua visão conservadora de mundo: toda aquela devassidão em meio ao ócio de suas vidas supérfluas, desde o começo do livro, acarreta em desgraças e mais desgraças; todas as personagens são insaciáveis quando embebidas na libertinagem: o adultério, a luxúria e tantos outros pecados são como um vício em que a única escapatória é o amor familiar real, algo diametralmente oposto às vidas turbulentas das personagens como Visconde de Valmont, conquistador contumaz e maquiavélico em suas metas, Marquesa de Merteuil, principal confidente de Valmot e das vítimas deste, sendo ponto central de onde a libertinagem pulsa e se alastra pelos corredores dos salões franceses, e todo um núcleo que compõe este belo quadro de sadismo e erotismo. É uma visão, em resumo, comparável a de Tolstói em sua Anna Kariênina e seu trágico fim, aos que leram a obra do mestre russo.
Como uma boa peça, o autor amarra tão bem suas histórias em quase duas centenas de cartas curtas que aquele núcleo torna-se difícil de se largar: o leitor, corrompido pelas manipulações das protagonistas como outras personagens, parece estar envolto daquele cenário de futilidade e sensualidade. E como é delicioso poder observar de perto toda a verdade guardada em um homem, seja ele bom ou ruim; ao ler a obra, acreditamos ser esta a maioria. Mas mesmo tendo tal caráter, Choderlos nunca deixa maus comportamentos impunes: todos pagam por seus atos, punidos por um deus onipresente e onipotente, mas muito talentoso: seu autor, que cometeu o único pecado de ter tido uma bibliografia tão curta mas, mesmo assim, tão brilhante. Não é em vão que esta obra é um dos maiores clássicos da literatura; da boa literatura!, aquela que nos provoca o tempo todo, que remói nosso íntimo e nos faz rever o mundo e nós mesmos e que, como uma cicatriz, nos acompanha até o fim da vida. Este é um livro que vale ser um grande corte em nossos corpos.