Antonio Luiz 11/08/2010
O liberalismo contra a liberdade
Além do neoliberalismo, o neoimperialismo é outro sintoma de que a destruição da herança do movimento democrático-socialista ameaça as conquistas igualitárias e humanitárias do século XX. Esse é o tema central dos cinco ensaios do filósofo italiano Domenico Losurdo – professor de filosofia da história da Universidade de Urbino e membro do comitê nacional da Refundação Comunista – que foram reunidos pela editora Anita Garibaldi em Liberalismo. Entre civilização e barbárie.
Nem sempre o marxismo favoreceu a libertação nacional, concede Losurdo. Karl Marx foi ambivalente em relação à colonização da Ásia, que analisou como veículo necessário da revolução social – sem desconsiderar seu custo humano terrível – e viu nos Estados Unidos de seu tempo o “país da emancipação política realizada”, esquecendo a escravidão dos negros e o morticínio dos índios.
Friedrich Engels elogiou os EUA por arrebatar a Califórnia aos ”indolentes mexicanos que não sabiam o que fazer dela” e muitos dos teóricos social-democratas da II Internacional defenderam como “progressista” a política colonial de seus governos.
Mas nos escritos de Lênin e na prática revolucionária que o seguiu, a crítica do colonialismo e do imperialismo tornaram-se centrais. Mesmo conduzida por burgueses contra um governo colonial conduzido por um partido operário, como era o caso do Egito rebelado contra um Império Britânico sob governo trabalhista, a luta pela independência foi vista como revolucionária.
Já para o historiador britânico Eric Hobsbawm, em A Era dos Extremos, a Revolução de Outubro dera ao ocidente “o incentivo do medo para se reformar”, promovendo os avanços nos direitos sociais e trabalhistas e nas políticas econômicas que tornaram possível a redução das desigualdades durante a Idade de Ouro do capitalismo, antes da crise de 1973.
Losurdo vai além: o desafio socialista foi responsável não só pela redução das desigualdades reais, como também pela superação das discriminações formais de raça, sexo e renda que viabilizou a democracia, pela emancipação das nações colonizadas e pelo próprio conceito de direitos humanos universais e de ser humano enquanto tal.
Na tradição liberal, a teorização e a celebração da liberdade avançaram lado a lado com cláusulas de exclusão baseadas em estereótipos sexuais, nacionais e raciais e com a imposição violenta do livre comércio – como John Stuart Mill a aplaudir a abertura dos portos da China às drogas britânicas pela Guerra do Ópio.
Vistos como eternas crianças aquém da racionalidade liberal, não-proprietários, mulheres, raças consideradas “inferiores” e nações “atrasadas” foram excluídos politicamente enquanto a ameaça revolucionária não levou as elites a ceder os anéis, um a um, para não perder os dedos. Em 1952, por exemplo, o Secretário da Justiça dos EUA defendia a integração escolar nos seguintes termos: “a discriminação racial fortalece a propaganda comunista e gera dúvida mesmo entre as nações amigas sobre a intensidade de nossa devoção à fé democrática”.
Eliminado o constrangimento da ameaça comunista, a noção de “Herrenvolk democracy” – democracia apenas para o povo dos senhores – volta à tona, principalmente no país onde a ideologia da “nação eleita por Deus com mandato da história para ser um modelo para o mundo”, nas palavras de Bush júnior, ainda é legítima – ao contrário do que se deu na Europa, onde os vários mitos nacionais de missão imperial e escolha divina neutralizaram-se uns aos outros.
A própria expressão “Estados renegados” (rogue states), que designa países como Iraque ou Irã, rebeldes passíveis de embargos, bombardeios e invasões, trai o veio discriminatório de sua origem. Rogues eram em meados do século XIX os escravos que fugiam – atitude que um psicólogo da época diagnosticava como um distúrbio psíquico, a “drapetomania”. Coisa parecida, segundo Losurdo, a rotular de “antiamericanismo” doentio, sintoma de inadaptação à modernidade moderna, os atuais movimentos de protesto e de luta contra o imperialismo.