Vania.Cristina 08/10/2023
A solidão e a loucura das pessoas abandonadas pela sociedade
Essa HQ, publicada pela editora Comix Zone, reúne quatro livros de Mutarelli: Transubstanciação, publicado originalmente em 1991, Desgraçados, em 1993, Eu te Amo Lucimar, em 1994 e A Confluência da Forquilha, em 1997. Considerei uma leitura impactante e fascinante, mas já aviso que é para maiores de idade, por causa da violência extrema e gráfica, escatologia, e muiitos gatilhos. E não é pra qualquer tipo de leitor. Os dois primeiros livros e o último são mais caóticos, mas não pense que o terceiro seja leve, doce ou romântico. O traço é preto e branco, bem trabalhado e detalhado. O principal tema é a loucura das pessoas que estão jogadas à margem da sociedade. O autor estava claramente vivendo problemas de saúde mental, lidando com traumas e com dificuldades de inserção na sociedade. A crítica que existe na narrativa não é exatamente racionalizada, ela é expressão do sofrimento, visceral, na carne, dos personagens, do autor e do leitor. As histórias são verdadeiros pesadelos, povoados de figuras da mitologia cristã e de pessoas deformadas, anões, gigantes, amputados... Os corpos são destroçados, crianças abusadas, mulheres agredidas... As relações humanas são difíceis, distorcidas, ora um corpo se funde no outro, ora se duplica. As histórias mostram dependência química, prostituição, pedofilia, estupro... São pessoas que estão tão largadas, sozinhas, abandonadas, que o pensamento também é distorcido: eu lhe mato e lhe liberto, você me mata e me liberta. A morte é a saída, a solução. Há momentos que personagens conversam com o leitor (metalinguagem). Em outros momentos, um olhar direto denuncia o reconhecimento da presença do leitor. No meu entender, o que está sendo dito é: Eu lhe vejo e lhe assombro. Meu olhar fuzila você, penetra você, lhe persegue. Mutarelli dedica essa edição de suas obras a Ferrez, o editor, amigo, "pai e irmão". Ferrez assina o prefácio e conta como foi impactado, ainda com 15 anos, pela obra de Mutarelli, e lembra um autógrafo antigo que o artista lhe deu quando o jovem começava seus escritos: "Ferrez, cuidado ao seguir meus passos." Mas se o menino se identificou, é porque já via ou vivia aquele nível de abandono ou de solidão. Para leitores maduros e empáticos a obra nos convida a sentir, na carne.