Resenhas - Kobane Calling

Karol 06/04/2021

Necessário
Ao viajar para o Curdistão sírio, o quadrinista Zerocalcare descobre que a imagem que a Europa faz dos curdos, dos rebeldes e das mulheres está errada. E ele precisa contar isso para o mundo, com humor e grandes doses de crítica aos europeus.

Art 08/04/2024

Uma daquelas obras que mudam vidas. E dessa vez literalmente.
O quadrinista italiano ZeroCalcare, de quem sou mega suspeito para falar pois simplesmente amo suas animações, começa com a ideia da obra como um diário de viagem para sua ajuda humanitárias nas áreas curdas, a começar pelo curdistão turco. No meio desse processo, porém, sua vida e a própria obra ganham outros caminhos, que resultam em roteiros muito mais complexos e profundos.

Zero desenha com os olhos e escreve com o coração numa espécie de reportagem em quadrinhos (no estilo Joe Sacco) que se incorpora com seu estilo próprio de piadismo para quebrar o clima, referências pra tudo que é canto e auto exposição de ideias, contradições e pensamentos. E isso tudo, é claro, sem perder o conteúdo informativo, aqui de suma importância não só pra compor a obra, mas porque também se tratam de informações omitidas e difíceis de se ver na grande mídia rodeada por rabos presos, preconceito e desinformação responsável por equiparar grupos de resistência com terroristas e confundir (propositalmente) a vítima com o agressor.

E é bom deixar claro que é uma HQ, e não um artigo científico. Há limitações no conteúdo e Kobane Calling não é nenhuma bíblia do assunto ou a mais atualizada ou a mais completo. E o autor não só sabe disso, como não tem o objetivo de que sua obra tenha tal propósito. Ela é, na verdade, uma bela introdução à ponta do iceberg que envolve o movimento curdo, suas peculiaridades, sua luta, sua organização, sua REVOLUÇÃO. Das perseguições e conflitos armados contra o ISIS e o governo fascista da Turquia até as forças armadas da YPG e YPJ (unidades de proteção popular). Da organização do partido dos trabalhadores do Curdistão (PKK) às prisões arbitrariamente injustas de manifestantes curdos, assírios, yazidis e de outras minorias étnicas da região, responsáveis não só pela prisão perpétua do intelectual Abdullah Öcalan, mas também pela de milhares de jovens (o que eu quero incluir crianças, como mostram relatos da obra). Zero colhe em sua HQ entrevistas de civis, militantes e guerrilheiros e tenta dar o microfone para que quem esteja dentro possa ser ouvido por quem está de fora. Enquanto isso, cita conceitos super interessantes que se incorporam como parte da realidade curda (em alguns territórios), como por exemplo a jineologia e o confederalismo democrático. Essas 272 páginas mostram a perda, a tragédia, as tradições, as alegrias e o principalmente que é necessário resistir. E, importante ressaltar, sem se aproveitar da luta alheia pra lucrar em cima.

Kobane Calling é um pedacinho de um processo revolucionário de luta, resistência e de construção que já perdura por mais de 40 anos. E é uma leitura impecável no que se propõe a fazer. Um belo início para quem nunca ouviu falar de nada do que aconteceu e continua acontecendo.

Assim como o Zero, eu também estou muito longe deser um especialista do assunto (e sequer viajei para alguma área curda alguma vez na vida) , então o que posso fazer para contribuir em algo é indicar duas leituras para quem quiser alguma dica pra se aprofundar um pouco mais:

A Revolução Ignorada – Liberação da mulher, democracia direta e pluralismo radical no Oriente Médio; Dilar Dirik, David Graeber, Comite de Resistência Curda, entre outros; Autonomia Literária, 2017

CONFEDERALISMO DEMOCRÁTICO; Abdullah Öcalan; Terra Sem Amos

Nação Democrática; Abdullah Öcalan; Terra Sem Amos

Sobre o movimento curdo e o pensamento de Öcalan; David Graeber; Terra Sem Amos

Kobane Calling foi traduzido por Fernando Scheibe e publicado no Brasil pela editora NEMO