Paulo Silas
20/07/2020Com o humor refinado de Ian McEwan, "A Barata" se situa como um romance satírico no melhor 'estilo Jonathan Swift'. O enredo traz uma sátira política sobre as vicissitudes da sociedade em geral em sua perspectiva política na contemporaneidade, estabelecendo um enfoque notório sobre a polêmica questão do Brexit. É através da narrativa ficcional, portanto, que o escritor lança luzes reflexivas (críticas através do riso) sobre a saída do Reino Unido da União Europeia, além de questões tantas envoltas à problemática, narrativa essa que, conforme aponta o autor, fica aquém da própria realidade que visa questionar na obra.
"Naquela manhã, Jim Sams, inteligente mas de forma alguma profundo, acordou de um sonho inquieto e se viu transformado numa criatura gigantesca" - assim tem início a história de "A Barata", apresentando ao leitor a transformação pivô do enredo de uma barata em um humano. A partir disso, com um dos mais repugnantes dos insetos assumindo a forma do primeiro-ministro da Grã-Bretanha, tem-se início ao processo do reversalismo: uma proposta de inversão do fluxo do dinheiro - as pessoas recebem dinheiro ao consumir coisas, devendo gastá-lo com o trabalho. A barata, protagonista da história, não medirá esforços para concretizar sua proposta populista, por mais que isso fira as bases democráticas que sustentam a nação. É a desenvoltura de todo esse plano político posto em prática, com seus meandros e escombros não confessados abertamente, que o leitor acompanha nessa ácida narrativa de Ian McEwan.
O aspecto kafkiano presente na obra é outro elemento perceptível, porém, que nela está num sentido próprio - inverso, talvez: é a barata que se transforma no humano, servindo tal alusão como algo que constitui a personalidade do protagonista (e não apenas de Jim: num contato telefônico entre o primeiro-ministro e o presidente dos Estados Unidos, Tupper, questiona-se o personagem que faz uma clara referência à Donald Trump não seria também uma barata transformada). Como evidencia o próprio Ian McEwan no posfácio do livro. "muitos perguntam se o processo do Brexit extrapolou a sátira. Que romancista perverso seria capaz de imaginá-lo? Ele é, em si mesmo, uma tortuosa autossátira. Talvez só nos reste a zombaria, a tristonha consolação do riso" - e é justamente amparado nessa crítica evidente que o escritor constrói a sua história. Nacionalismo exacerbado, hostilidade aos "de fora", aposta em soluções simplistas para questões complexas e outras questões nesse âmbito são trabalhados nesse pequeno livro de Ian McEwan - merecendo a leitura!