Atrás do baú de guardados

Atrás do baú de guardados Lenita Estrela de Sá




Resenhas - Atrás do baú de guardados


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Krishnamurti 03/01/2020

Atrás do baú de guardados
Em seu 15º livro publicado, “Atrás do baú de guardados” – contos –, a escritora maranhense Lenita Estrela de Sá demonstra um agudo senso crítico aliado à amplo sentido histórico no qual coerência, razão, nexo e lógica nos chegam aos sentidos. Das 11 narrativas reunidas no livro, pelo menos quatro delas direta ou transversalmente, abordam aspectos de nossa formação histórica.

As narrativas curtas no gênero contos-, que envolvem a História oficial sob o olhar dessa autora mostram-se capaz de resgatar da história o nosso presente de forma talvez mais eficaz que outras produções ficcionais. É entretanto gênero pouco cultivado entre nós, em parte talvez, pela alegada afeição da cultura brasileira a documentos nem sempre confiáveis. Para além da dificuldade em armar aquele singular efeito único que o gênero deve possuir, o ficcionista que a ele se dedica deve ter em mente que o objetivo ficcional não é o mesmo do documental. Importa imprimir à narrativa o espírito da época, ou a “verdade da atmosfera”, em lugar do detalhismo e da minúcia. Daí a valorização da concentração dos acontecimentos, do elemento dramático e da utilização do diálogo, a fim de alcançar a vivacidade narrativa. Busca-se o despertar ficcional dos homens que protagonizaram épocas.

Decorre desses postulados, que textos desta natureza não se caracterizam apenas pela sua roupagem externa, ou seja, por ter lugar num passado mais ou menos remoto, mas sim, pela relevância que o tempo histórico retratado tem na ação e, num certo sentido, como essa ação repercute no presente. São textos que não endossam a perspectiva afinada com as histórias oficiais. Particularizam por meio do exercício ficcional, o resgate das histórias silenciadas por processos de dominação cultural imposta por uma perspectiva colonialista hegemônica na historiografia. Abrem espaço para narrativas plurais, sem abdicar de noções como a de causalidade histórica. Em suma, induzem à percepção de pontos de vista alternativos, o que se mostra consoante inclusive, com práticas mais recentes também no campo da historiografia, como a micro-história, a história vista de baixo, a história das mulheres, a história oral etc.

Em “Joalheria Madri” o leitor se depara com parte da vida de Ana Joaquina Jansen Pereira (1787-1869), também conhecida como Donana. Empresária e política brasileira, que se tornou uma personagem controversa na história do Maranhão. Nesse texto, a personagem se vê em uma ambiência eivada de fofocas e maledicências na qual a sociedade de então se deleitava, ao tempo em que contrabandistas e ladrões de todos os naipes cometiam as maiores barbaridades. Já em “Atrás do baú de guardados”, reencontramos a mesma personagem – mulher muito à frente de seu tempo -, a lutar desesperadamente por sua emancipação, inclusive política. Percebe-se claramente que muito do que se construiu de negativo em torno dessa mulher determinada a não existir como um animalzinho de estimação de maridos, muito contribuiu para o cultivo dos mitos negativos que ainda hoje cercam seu nome.

“Depois da paixão o que resta”. É em conto fenomenal em termos de simbolismos. Há no centro da narrativa uma datação de outubro de 1942, época em que estávamos mergulhados na ditadura Vargas que tinha suas simpatias com a Alemanha de Hitler. Ali a ambiência maléfica, pesada, eivada de subterfúgios e interesses escusos. Acompanhamos a história de uma mulher calculista que acaba por seduzir um machão desses do interior, fazendeiro, e que era um admirador do governo fascista que vinha se enraizando no Brasil. Aí encontramos uma mulher ambiciosa que resolve viver sua vida, seus amores, sua liberdade. Mas como pode haver emancipação eu um tal ambiente? A protagonista apesar de seu trunfo ligado ao sexo, não tinha absolutamente nada a seu favor. O amante casado a quer possuir com exclusividades, o próprio irmão se une a outro bandido rico para tramarem se apossar de seus bens. E até o padre, do alto de sua “neutralidade sagrada”, não a condena abertamente mas também a tenta convencer a deixar-se ficar no papelzinho da fêmea comida e caçada há milênios. Interessante notar que em uma das confissões ao padre ela afirma: “Pois foi assim que fiz com o João, trazia ele na palma da minha mão. É assim que faço com todos. Desde que meu pai foi embora com aquela vagabunda e eu vi os dois no quarto, na cama da minha mãe” ... Positivamente está certo o adágio popular de que “mulher ultrajada destrói impérios”. Verdade. Mesmo que ela vá de roldão no meio da destruição como aconteceu com a protagonista desse drama. É o jogo da terra arrasada que a humanidade vem jogando há milênios. Mas isto não tem nada a ver com História, não é mesmo?

Vistas em seu conjunto, tais narrativas focam vivências-limite nas quais o tempo parece funcionar como aquele efeito provocado pelas bonecas matrioskas. Como se um episódio já estivesse em forma de germe no outro, sempre com um olhar a atentar para problemas estruturais de nossa colonização fundada em violências e arbitrariedades. Se afiguram para além da realidade íntima de cada narrativa, como uma crítica ao tipo de colonização predatória de que fomos vítimas, ou pela ganância e egoísmo de nossas elites do que propriamente pela possibilidade de superação do status quo. Nada de condições, mais humanas e igualitárias.

A autora joga habilmente com possibilidades de atualização do possível, empresta voz a discursos minoritários ou impositivamente silenciados, das historiografias oficiais lançando mão justamente de uma articulação entre dois eixos: o plano histórico e o plano individual das personagens inseridas em uma dada temporalidade, ou para usar a expressão de Fredric Jameson: Focaliza eventos que trespassam e transfixam de um só golpe o tempo existencial dos indivíduos e seus destinos numa dada temporalidade, e como tudo isto reflete em sociedade.

Do entremeio temporal dessas narrativas emergem outras ficções que revelam outros aspectos da realidade de nossos dias. E é então a vez dos deserdados da sorte. Dos pobres diabos desse imenso continente chamado Brasil. Todos, de alguma sorte, reflexo de nossa colonização no que ela teve de mais perverso e excludente. Há situações de um sofrimento e carências tão profundas que nos parece afigurar a mesma peça de sempre com cenários e intérpretes novos. Peça que se encena em um país de reconhecida desigualdade social. Afinal o Brasil figura entre os dez piores do mundo nesse quesito. E isto não é casual muito menos obra do “destino”.

Em “Teriam chegado ao reino de Dom Sebastião?” narra-se a história de vida de uma mendiga chamada Teresinha que perambula pelo centro histórico de São Luís do Maranhão. Em dado momento lemos:

“Ao fim desse dia, resolveu que ia dormir num sobrado abandonado na Rua do Giz, de onde dava para ver a torre amarela da igreja da Sé, onde pedia esmolas ao término das missas da manhã, quando acordava disposta a lutar pela própria sobrevivência. A missa das dez enchia a praça de movimento e era sempre possível arrumar alguns trocados para uma cachacinha no final de semana. Encheu-lhe os olhos a decadente opulência dos casarões antigos, símbolos de riqueza, orgulho e poder – tudo passado! Teresinha parou de andar por uns instantes, impressionada pela visão dos beirais sobre as sacadas aristocráticas, agora tomados pelo mofo e pelos ratos, a mais pura constatação do pouco que valemos neste mundo vasto.”

Já em “Divino Espírito Santo”, acompanhamos a verdadeira odisseia de vida de Otílio um humilde pescador, que tem um único filho homem, já rapaz, muito dado a farras e rabos de saias. O filho não tem em si a garra para viver de seu próprio trabalho, ademais a vida de pescador sempre sujeito à atravessadores do pescado, sem qualquer possibilidade de real melhoria de vida, não comportava em seu espírito a resignação do pai. Resultado; em meio a pobreza e a explosão de hormônios, o rapazinho acaba se envolvendo em triângulo amoroso, ou coisa que o valha. Entra em luta corporal com o rival, e o que resulta é que o rival vai para a cova e ele para a cadeia. Mas essa historinha tão comum Brasil afora, na pena da senhora Lenita Estrela de Sá, ganha especial enfoque porque nos mostra como em um meio tão tacanho, estreito de ideias e repleto de crendices se aceita a vida que se leva ou em contrapartida se colhe a vida que se aceita.

“Josemar estampado na coluna policial, por causa de mulher esfaqueou até a morte outro moleque. Otílio escutava longínquo o rufo das caixas do Divino, as bandeiras rubras, os avisos, um bater de asa no espírito. O réptil viscoso se enrodilhava nele, tomava-lhe a respiração, triturava-lhe os membros num arrocho dos demônios, a grande serpente em volta da ilha de São Luís, que os incrédulos supunham mera fantasia, pronta a destruir a cidade como os antigos lembravam às gerações mais novas; o toque das caixeiras, o fervor dos cânticos e rezas, no entanto, controlava o mal alojado na fera pelo tempo que se fora e pelo que ainda viria. Sozinho naquela bruma, no fundo da sua vertigem, agitava-se inteiro, tentava não se deixar dominar por aquela sensação de medo, que lhe umedecia a palma das mãos, esforço inútil. Há duas festas, não cumpria a promessa de levantar o mastro do Divino em Alcântara, do outro lado da baía. Sobre ele a fúria do Espírito Santo se abatera, certamente.”

A leitura de um trecho assim provoca-nos questionamentos: Até quando nos faltará a capacidade de tomar as rédeas de nossos destinos e transformar o meio social? Imersos em crendices, credos e superstições cada uma mais amalucada do que a outra? E finalmente, vale ainda referir o texto “Liquidação” e a história do palhaço Pechincha. Um sujeito que assim se vestia para atuar na 29 de março em São Paulo, com o intuito de atrair compradores para uma loja. Sabem quem era o palhaço Pechincha? Era Caetano, mais um anônimo que “chegara a São Paulo ainda novo, cheio de expectativas mirabolantes de redenção social, de transformação da vida acanhada que arrastava no interior de Minas. Abandonou a escola, porque já estava na hora de ganhar dinheiro”. A vida de Caetano já se entrevê era infernal, submetido a todo tipo de carências e humilhações, e ainda por cima obrigado a demonstrar publicamente a “alegria” de um palhaço. Mas Caetano tinha sentimentos, como não? Almoçava diariamente uma porcaria qualquer em uma lanchonete e:

“Logo que deixava a lanchonete, ia andar um pouco, depois sentava-se numa praça e esperava que o tempo escoasse, abandonando-se no banco, o laço do tênis folgado, a gravata de bolas azuis posta de lado, o olhar perdido, submetido a uma fatiga cujo ponto visceral não decifrava ou discernia com clareza. A angústia se aproximava e ele não reagia, inelutável sensação de pasmo. Aí tinha vontade de estraçalhar a roupa de palhaço até a nudez sem limites, a que transcende o corpo, a que lhe daria forças para o grito, consciência atravessada por violências indeléveis”.

Mas Caetano acabava sempre resvalando para a resignação... Um doce para quem adivinhar qual é o grande simbolismo do palhaço Caetano.

Livro: “Atrás do baú de guardados”, contos de Lenita Estrela de Sá – Editora Penalux, Guaratinguetá - SP, 116 p.
ISBN: 978-85-5833-605-5
Link para compra e pronta entrega:
https://www.editorapenalux.com.br/loja/atras-do-bau-de-guardados
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