Lais 27/12/2021A saudade do passado é o nevoeiro que envolve tudo na mesma claridade enganadora e opaca...Um romance sobre obsessão, saudade, apego ao passado e aos costumes
CONTEXTO HISTÓRICO E GEOGRAFIA
Rio de Janeiro, fim do século XIX. O período é marcado pela alta aristocracia carioca no Estado que, até então, ainda era a capital do Brasil e a forma de governo mudava para República. A economia era fortemente marcada pelo café que enriquecia a aristocracia, enquanto a população pobre era dizimada pela febre amarela e varíola. “A intrusa” foi publicado pela primeira vez em 1908 e lê-lo é como olhar de perto para a cidade do Rio de Janeiro da época, uma vez que autora traz de forma rica os detalhes da sociedade sob observação, seja pelos costumes, vocabulário ou a forma como se comportam.
Entre os enlevos históricos que a autora nos traz diretamente do século XIX está o uso do bonde, que começava a se popularizar no Rio com a chegada da eletricidade e o primeiro trilho foi construído passando pelo Largo do Machado, lugar que tem sua descrição na narrativa. Além disso, a casa do personagem principal é localizada no bairro de Laranjeiras, uma das partes mais antigas e ricas da cidade. A ocupação desse bairro é famosa, entre elas a própria princesa Isabel e nomes da literatura e arte brasileira. Na primeira página, por exemplo, já nos debruçamos sobre um endereço verdadeiro: O Cosme Velho, onde mora o protagonista. A título de curiosidade, Machado de Assis – amigo íntimo de Julia de Almeida – tinha como apelido O Bruxo do Cosme Velho, porque morava nessa rua. Também lemos sobre o bairro da lapa, estação do Corcovado e a praia de Bota Fogo. Nessa última, a autora reservou o capítulo XVII inteiro em benefício histórico ao descrever navios baleeiros no porto (mesmo que esse tenha sido o capítulo que menos gostei, tem sua função).
SINOPSE
Todos já sabem mas vamos lá: um viúvo contrata para cuidar de sua casa e de sua filha uma governanta que exige nunca ver. As sinopses resumem-se a isso, mas aqui eu adianto que esse livro se trata de uma narrativa sobre obsessão, apego ao passado e aos costumes, um prato cheio para quem gosta de romances em que se pode observar de perto o comportamento humano em sociedade, ainda mais uma sociedade antiga. Inclusiva dá pra perceber que não melhoramos tanto com o passar do tempo...
O MELHOR CAPÍTULO: IX
Nesse capítulo a autora viaja para outro núcleo de personagens: Uma mulher rica (que praticamente usa o marido como representante masculino na política) pega o trem com a filha para o Corcovado na tentativa de encontrar-se “acidentalmente” para o almoço com um homem de influência política. O mais incrível desse capítulo é o diálogo com a filha, e a paisagem honradamente descrita.
ANÁLISE
Com certeza eu gostei muito mais de “A Falência” e recomendo que comece por ele. Apesar disso, esse romance tem seu valor, uma vez que a narrativa, a descrição e a construção de personagens da Julia Lopes é impecável como sempre. Minha nota não chegou em cinco estrelas porque eu senti que tudo foi perfeito: as cenas da baronesa, da Pedrosa, do Assunção e do Argemiro; mas tudo foi perfeito cada um em uma parte, sem que elas se juntassem. Talvez o propósito não tenha sido realmente costurar o ponto de vista e não ficou ruim, apesar de que me fez sentir um corte de transcorrência. Apesar dessa barreira entre as personagens, elas afundam-se dentro de si em pensamentos profundos lapidados pela genialidade da autora.
O MELHOR PERSONAGEM
Eu gosto muitíssimo do padre Assunção porque as ideias espirituais dele se assemelham às minhas e eu me senti representada. Mas com certeza o mérito de melhor personagem vai para a PIOR e mais IRRITANTE que eu já li em muito tempo: a baronesa. Sério, o jeito como ela foi criada convence tanto que eu quase senti as bufadas de raiva e ciúmes dela na minha cara. A velha é louca, surtada, obsessiva com a filha morta e doente por querer que o cara não se aproxime de nenhuma mulher nunca mais. Terapia? E como a Julia consegue escolher as palavras certinho pra mostrar bem a opressão que é sentida quando se está no mesmo cômodo que essa mulher. Muita astúcia, que ódio. Recomendo.