Mauricio (Vespeiro) 17/02/2018Decadência, estagnação e frustração descritas com cruel realismo.Celebrado por grandes escritores contemporâneos, como Kurt Vonnegut, John Updike e Stephen King, a prosa elegante (mas muito fluida e sóbria) de Richard Yates é apenas uma das virtudes de “Foi Apenas Um Sonho”. O autor faz uma leitura minuciosa da decadente sociedade americana dos anos 50, mas acrescentando uma boa dose de intensidade e caos, a obra se torna um retrato fiel de muitas famílias atuais. Será que ele imaginava o quanto o mundo iria piorar?
Yates conta a história de Frank e April Wheeler, um casal de classe média que decide construir uma vida a Oeste de Connecticut, perto de Nova York. Ambos têm suas origens em famílias disfuncionais e a soma desses fatores durante o período pós-guerra (quando o americano médio ainda procurava reencontrar seus objetivos) acaba jogando gasolina na fogueira. O apático Frank odeia seu emprego tedioso. A ingênua e alienada April odeia sua própria existência. Dois filhos indesejados e uma vida monótona deixam a convivência do casal praticamente insustentável. O conformismo torna-se um nocivo anestésico até que oportunidades de mudança surgem para os Wheeler. Porém, seus ideais já não são compartilhados e a pressão de lidar com o destino da família acaba sendo grande demais para os dois. A verdade - ou, como diz Yates, “o vazio desesperador” - transcrita para as páginas do livro é tão real, tão dura, tão palpável que, por vezes, a leitura deprime tanto que precisei dar um tempinho.
Enquanto April cuida da casa, Frank encara sua rotina diária numa atividade maçante. É mentalmente desgastante ter um emprego sem desafios cercado de colegas também sem propósitos. Fui funcionário público por 12 anos e sei bem o que é sentir a vida estagnada. O autor descreve o ambiente de forma tão perfeita que até o cheiro de papel velho de repartição pública parece emanar das páginas do livro.
Tão interessantes quanto os Wheeler são os personagens magnificamente construídos como apoio. Os Campbell (Shep e Milly), vizinhos e “melhores amigos” são difíceis de aturar, mas tornam-se um desafogo para quem não vê outra saída. Já com os Givings, Yates insere elementos riquíssimos. A chatíssima Helen e o inexpressivo Howard formam um casal que se tolera por décadas. São o exemplo clássico da família que cede às convenções sociais, usando as máscaras necessárias para um convívio em prol exclusivamente da conveniência. É quando aparece o personagem que contrapõe todo o status quo. Recém-saído do manicômio, John Givings traz à tona verdades inauditas que constrangem e levam todos a reflexões. Uma ironia inteligentíssima onde um louco é quem esbanja sanidade e conexão com a realidade.
Basicamente temos uma história que trata da degeneração dos relacionamentos em função do comodismo. São vidas ligadas no piloto automático, entrando numa espiral vertiginosa de erros, frustrações e verdades inconvenientes que, quando reveladas, destroem as bases mais profundas que sustentavam mentiras dissolutas. Yates expõe o resultado dos fracassos na autoafirmação pessoal, costurando o roteiro de forma engenhosa. Nenhum elemento é trazido para a narrativa sem que venha a ter alguma importância na sequência, recurso herdado com competência por Stephen King. A trama é muito bem concluída, sem histrionismo, sem reviravoltas desnecessárias, apenas um esvanecer brando e silencioso.
A obra foi magistralmente adaptada para o cinema em 2008, dirigido por Sam Mendes (de “Beleza Americana”) e estrelado por Leonardo DiCaprio e Kate Winslet (sim, a dupla de “Titanic”). Indicado a três Oscar em 2009 (ator coadjuvante - o excelente Michael Shannon no papel de John Givings, direção de arte e figurino). Kate Winslet ganhou o Globo de Ouro. O filme foi indicado para 89 premiações, vencendo 19 delas.
A edição foi muito bem produzida, com ótima tradução de José Roberto O’Shea. Para não dizer que foi perfeita, senti-me incomodado com a escolha da fonte com caracteres minúsculos “t” e “r” muitíssimo parecidos, exigindo uma apertada na vista com alguma frequência.
Nota do livro: 8,04 (5 estrelas).