Otávio Augusto 03/12/2023Qual o futuro da religião?Independentemente da crença do leitor, a leitura desse livro é imperativa.
Freud inicia definindo o que é cultura. Para ele, cultura é tudo aquilo que nós criamos como forma de nos distanciarmos da vida animal, guiada por instintos e pulsões, e conseguirmos nos estabelecer em uma sociedade civilizada. Dessa forma, a cultura surge como um freio aos nossos instintos animalescos, potencialmente destrutivos. Uma lei como "não matarás" só existe porque há uma pulsão natural para a violência e o assassinato, de maneira que precisamos criar uma cultura que seja coercitiva a todos, puna seus transgressores e reforce o comportamento aceitável. Logo, o maior elemento da cultura, segundo Freud, é a religião.
Nesse ponto, cabe destacar as limitações do texto de Freud. Apesar de ele se referir constantemente "à religião", o texto deixa implícito que seu intuito será criticar as religiões monoteístas abraâmicas, mais especificamente o cristianismo e judaísmo. O islamismo e as religiões orientais são deixados de lado. Também não há comentários acerca de religiões e espiritualidades não institucionalizadas.
A partir dessa delimitação, Freud passa a analisar a relação do ser humano com a natureza. Esta é vista como uma força invencível para a humanidade. Ela não nos oferece limites e barreiras para nossas atitudes; na verdade, ocorre o contrário: os seres humanos que são limitados por ela, de maneira que a cultura surge como um escudo contra sua força onipotente. Sem ela, poderíamos não passar de mais uma espécie animalesca perambulando nos mais diversos biomas do planeta, tentando sobreviver com os bens que a natureza tem a nos oferecer. Frente a essa vulnerabilidade, a religião nos surge como uma forma diferente de enxergar o mundo, por meio da criação de leis e costumes que nos permitam vê-lo sob uma ótica humana. A tempestade e a bonança, por exemplo, ainda que sejam antagônicas, passam a ser obras de uma entidade superior. Entrona-se um ser cuja vontade justifica todos os acontecimentos terrenos e extraterrenos; uma entidade que cuida de cada um, recompensando os infortúnios dessa existência no além-vida, mas que também pune severamente os transgressores.
Nesse contexto, Freud vê a religião como uma consequência da nossa vontade de nos sentirmos amparados por algo maior, capaz de guiar a nossa conduta e de nos proteger das forças externas - como a natureza - , analogamente ao sentimento de proteção sentido por um filho ao ser educado um pai responsável, que lhe ensina o que é certo ou errado e o protege do mundo exterior. Consequentemente, Freud considera a religião como um desejo infantil e paternal ainda não superado pela sociedade, capaz de ser ao mesmo tempo uma ilusão - por derivar do desejo - e um delírio - por contradizer a realidade factual. O ideal seria que nos apoiássemos na razão e na ciência como pilares da nossa busca pelo conhecimento acerca de nós mesmos e do mundo em que vivemos, ideia que se aproxima do pensamento de Carl Sagan, divulgador científico que via na ciência a melhor forma de desbravarmos o universo em que estamos inseridos.
Ademais, por ser a religião um produto da fragilidade da condição humana, ela é vivenciada no campo da subjetividade de cada indivíduo. O fato de uma pessoa ter passado por uma experiência supostamente espiritual não significa que outra possa vivenciá-la, pois cada um possui sua própria e única psique. Entretanto, devido ao sentimento de pertencimento cultural ser fortalecido ao aderirmos a esta ou àquela religião, há uma tendência para nos desenvolvermos, da infância à vida adulta, sob os ditames de uma religião. Por consequência, ela pode gerar neuroses e prejudicar a própria vida daqueles que não se encaixam nela, principalmente quando ocorrerem choques entre seus princípios e o mundo real.
Portanto, Freud, bem mais radical do que Sagan, a meu ver, põe a religião como uma ilusão a ser superada, pois, sendo ela um produto de um infantilismo generalizado, a superação dela torna-se o elemento central para o amadurecimento da civilização. Em suas palavras, "o homem não pode permanecer criança para sempre, ele precisa sair finalmente para a vida hostil". Poderiam no futuro as pessoas crescerem com uma sem religião? Se sim, seria possível realmente superarmos seu domínio, ou apenas amenizá-lo? Freud deixa essas questões no ar.
Apesar de ser um comentário dotado de uma certa prepotência, Freud admite que sua tese - a superação da religião como necessária ao amadurecimento da humanidade - pode também não passar de uma ilusão. Ao menos, ele aceita que sua ilusão possa ser desmentida e contrariada, diferentemente da religião, a qual funciona da maneira dogmática e pouco mutável, sem espaços para mudanças e adequações ao mundo atual. Logo, a questão central é a qual ilusão nós nos apegaremos, pois, como já disse Albert Camus, em "A peste", precisamos ter ilusões para conseguirmos sobreviver.
Depois dessa leitura, quero ler tudo que Freud escreveu sobre cultura e sociedade.