Manu 14/03/2011
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Imagine que você resolveu passear no campo, sem nenhuma expectativa nem pretensão, e logo no terceiro passo, uma mina explode bem ao seu lado. E agora, onde estará a próxima? Respire fundo, troque a mina por poesia, o campo pela prosa e saia correndo explodindo tudo. Foi assim que li Quantas madrugadas tem a noite, do angolano Ondjaki.
É verdade que fui conquistada pela curiosidade. Um livro com esse título teria que natureza de enredo? Na edição que tinha em mãos, do Editorial Caminho (grupo LeYa), a sinopse não dava nenhuma indicação além de situar a história na Luanda contemporânea e rasgar elogios ao autor. Como a edição era de 2009, ainda não havia na lista de prêmios de Ondjaki o Jabuti que ele recebeu ano passado na categoria juvenil com AvóDezanove e o Segredo do Soviético. Assim, desconhecendo a literatura africana, o autor e a relevância dos prêmios recebidos, resolvi pagar pra ler e pra matar a curiosidade.
Já nas primeiras frases soube que valeria a pena. Olha só:
"Sabes o que é não sentir o coração e sentir o coração, tud’uma batida só, sangue leve no peito e lágrimas limpas a escorrer? Faz conta foste na pesca, rede e tudo, e em vez do peixe grande meteste a rede na água e te veio uma nuvem? Se é impossível? Eu sei lá, avilo, eu sei lá…"
É com essa carga poética que somos conduzidos até um personagem sentado numa mesa de bar qualquer, a pedir cervejas pagando com histórias. Para nós, brasileiros, a fluidez da oralidade de Ondjaki pode não ser tão natural no começo, o uso do glossário ao fim do livro pode ser necessário por vezes, mas nada que as primeiras páginas e as primeiras ngalas não nos deixem habituados. Se você já ouviu um angolano falar, melhor ainda: pense nele que a leitura escorre tão fácil quanto uma golada de cerveja bem fresquinha no verão.
Fiz essas voltas todas porque era preciso conhecer a forma antes de saber o conteúdo – ou você realmente levaria a sério um livro cujos personagens são um albino, um anão novo-rico, um morto chamado AdolfoDido (trocadilho incluído), uma mulher que, assassinando a abelha rainha, tornou-se a chefe de uma colmeia, e um cão tão assustador que poderia ser afilhado do diabo? Pois, eu não levaria. Isso porque não mencionei ainda o falso Sindicato das Putas e as duas mulheres que disputavam a viuvez de AdolfoDido pra receberem a pensão que o Estado concedia às viúvas de ex-combatentes, coisa que o morto nunca havia sido. Por isso me surpreendi com Quantas madrugadas tem a noite. A habilidade literária e a sedução poética de Ondjaki são tão eficazes que nem achamos absurdas as bizarrices contadas entre uma garrafa e outra, apenas rimos, e não poucas vezes. Entretanto, enquanto temos o sorriso na cara, em silêncio refletimos o que o autor diz nesse trecho:
"é no sofrimento que o sorriso de um povo fica todo semelhado – uma única boca sem rosto a rir na cara da desgraça, a lhe amolecer."
Mas não pense que este llivro disfarçadamente louva a infelicidade, ou que esteja atado ao falso conceito de que em Luanda tudo o que há é fome, guerra e suas consequências. Não. Num monólogo ininterrupto e muito mais interessante e envolvente que o de Clamence, personagem de A queda, de Camus, o proseador de Ondjaki nos mostra que a vida daqueles homens às voltas com um enterro e com um morto besuntado com mel é semelhante a todas as outras em qualquer lugar do mundo. Para um primeiro contato com literatura africana, não poderia ter sido melhor pra mim. Não há no livro vestígio algum do preconceito de savana, batuque e pobreza que tão entranhado está no nosso imaginário sobre a África. Os desassogos causados pela guerra civil, pela AIDS e por todos os problemas particulares de Angola certamente estão presentes em Quantas madrugadas tem a noite, mas de forma tão natural e sutil que cede espaço à universalidade dos poersonagens que simplesmente amam, jogam conversa fora, pregam peças por divertimento, salvam a vida uns dos outros, são amigos pra além da morte. É uma história que nos mostra que literatura não tem cor, nem certidão de nascimento, que “a literatura não era mais pra ser do terreno do aparteide“.
Enfim, gaste quantas madrugadas quiser lendo esse livro. Vale a leitura e as surpresas pelo caminho.