Ademiro 28/11/2016A REUMANIZAÇÃO DO HOMEM EM POESIA LIBERDADE, DE MURILO MENDES: entre o caos e a sacralizaçãoO conteúdo imagético do livro Poesia liberdade, do escritor mineiro Murilo Mendes, desvela a realidade que abrange, no tempo histórico, o mundo inteiro: o sentimento do mundo da “guerra total” (MENDES, 2001, p. 13). Entretanto, as imagens do corpo, constantes no texto, foram inseridas intencionalmente, mediante a concepção cristã do autor, conforme se pode entender, em favor da transcendência, segundo ele, necessária à humanidade. Essa linguagem universal, de cunho religioso, envolvendo a experiência humana, atribuído a sua poesia, se por um lado lhe legou críticas negativas, por outro, tornou-o celebrado, dada a sua oposição à guerra.
O texto é dividido em duas partes: o “Livro primeiro: Ofício humano/1943”, composta por vinte e quatro poesias, e o “Livro segundo: Poesia liberdade/1944-1945”, constituída por trinta e cinco poesias. Na primeira parte, compreende-se que hajam menções ao caos, que se forma no interior do homem, em decorrência do caos exterior, decorrente da guerra, causada pelo próprio homem, que gera abandono, dor, morte, esquecimento e outras mazelas decorrentes. Já na segunda parte, nota-se que a menção é ao período pós-guerra, em que a humanidade tem de lidar com os traumas resultantes da guerra, pelo viés da sacralização.
Após principiar a narrativa, apontando para um mundo caótico, em seguida o autor recompõe a ordem das coisas, a partir de uma visão surrealista. O texto é construído com base no surrealismo, na poesia social, no experimentalismo barroco e no neobarroquismo, e, ainda, em experiências do autor, conforme se verifica em poesias como “Murilo menino”, que remete à sua infância e à sua conversão ao catolicismo (MENDES, 2001, p. 49), e “Entrada no sanatório”, que aponta para o período em que esteve internado, no Sanatório de Correias, para tratar a tuberculose (MENDES, 2001, p. 11).
Sobre a caracterização imagética do discurso de Murilo Mendes, Alfredo Bosi (2006, p. 478) fala que nela é reconhecido o “processo futurista da montagem e o processo surrealista da sequência onírica; a combinação de ambos faz-se pelo traço comum, associativo, que permite que se justaponham sintática e simbolicamente os dados da imaginação”. Ao perceber e analisar o paradoxo constituído pelo caos e a sacralização das coisas, tais como as reivindicações sociais, o leitor pode construir sentidos que o levem a aludir sobre à redenção social decorrente da reumanização do homem, em determinado tempo e espaço, não apenas durante a Segunda Guerra Mundial, quando escreveu a sua obra.
Pela convergência de um senso estético apurado, que Murilo Mendes busca marcar a vertente surrealista que inaugura, a qual ele chama de “poesia à brasileira":
Abracei o surrealismo à moda brasileira, tomando dele o que mais me interessava: além de muitos capítulos da cartilha inconformista, a criação de uma atmosfera poética baseada na acoplagem de elementos dispares. Tratava-se de explorar o subconsciente; de inventar um outro frisson mouveau, extraído à modernidade; tudo deveria contribuir para uma visão fantástica do homem e suas possibilidades extremas (MENDES, 1994, p. 1238 – 1239)
É esse ângulo, inerente a dialética de Murilo Mendes, que direcionará às observações acerca dos assuntos necessários à compreensão de Poesia Liberdade, dentre os quais o momento contextual em que a humanidade se encontrava: o tempo da vitória e das barbáries da guerra, acerca do que o poeta aponta os desafios impostos bem como o aterrorizante progresso que se seguiria. Por isso, talvez, o eu lírico instigue o interlocutor a refletir sobre a dignidade e a liberdade expressos pela vida, fazendo se pensar a humanidade em seu todo, sem distinções entre “grandes” e “pequenos, considerando-se a libertação como extensiva a todos.
É mediante a essa inquietante intenção de falar sobre a vida que, utilizando a forma livre do verso, desprovida de rima, mas não de musicalidade, que o poeta constrói textos sem uma forma fixa. Contudo, tais textos insistem em se revelar poemas, conforme a reiterada apresentação das poesias que têm a inserção do termo “poema” em seus títulos: “Poema presente”, “Poema estático”, “Poema antecipado”, “Poema dialético”, “Poema de além-túmulo”, “Pós-poema” e “Poema novo”. É bem certo que essa seja uma fuga da massificação, em prol do novo.
Em se tratando da religiosidade, da sacralização das coisas, expressa por analogia nos poemas de Murilo Mendes, em Poesia liberdade, parte-se para a análise do seu “Livro segundo: poesia liberdade/1944-1945”, em que o autor parece aludir ao pós-guerra, momento de alteridade, promovido pelo encontro entre o caos exterior e o caos interior, conforme se verifica em relação ao poema “Elegia nova”.
O que se entende a partir da leitura desse poema é que sonho de liberdade, conquistada por meio da guerra, é utópico, considerando que suas consequências levam na verdade à morte, que deixa como cicatriz a dor e a amargura. O sofrimento que recai sobre a sociedade ofusca a vitória e, por conseguinte, desconstrói a ideia de um futuro melhor, já que as guerras são incapazes de restituir os amores, às raízes degradadas.
De acordo com Davi Arrigucci Jr (2000, p. 95), é em razão das marcas deixadas pela guerra, do sofrimento incontido que o poeta se utiliza da analogia à religião como solução instantânea para o problema formal, propondo “uma imprevista harmonia em meio ao desconcerto geral das coisas”.
Murilo Mendes tira do surrealismo o que interessa. Ele usa elementos inconscientes, oníricos ou absurdos, para num misto de liberdade, somado a uma “férrea determinação” (ARRIGUCCI JR, 2000, p. 108) e inconformismo para buscar e sondar o real, fazendo com que os sujeitos, pelos olhos do desejo e da imaginação, se entranhem no outro. É a isso que a imagem do poema do autor surrealista se propõe.
Conforme Davi Arrigucci Jr (2000, p. 108), a “concepção surrealista, de base materialista e despovoada de deuses acabou por casar-se à fé católica de Murilo, exasperando-a pelo radicalismo, pela recusa do mundo dado”. Logo, é a transcendência, que o eu lírico aponta como raiz de esperança, mediante a qual o homem pode olhar para dentro de si mesmo e enxergar a humanidade como um todo bem como a sua própria liberdade, tornando-se, então, reumanizado.
Por fim, a luz de Davi Arrigucci Jr (2000, p. 112), ao se apontar o “sofrimento trágico da vida”, a poesia de Murilo Mendes não é totalmente cristã nem inteiramente pagã, abarca as duas coisas, sintetiza ambos os aspectos, de forma peculiar, em imagens que possibilitam tratar os textos seja por uma ótica religiosa ou por outra de ordem filosófica comportadas. De modo que ao ser conduzido por um paralelo de imagens, como as inerentes ao caos e à sacralização, atendo-se aos detalhes, o leitor pode perceber a coerência que as articula, podendo, desse modo, refletir sobre os sentidos construídos, tais como a reumanização do homem.
Referências
ARRAGUCCI JR., Davi. Arquitetura da Memória. In: O cacto e as ruínas: a poesia entre outras artes. 2ª.ed. São Paulo: Duas cidades/Ed. 34, 2000.
BOSI, Alfredo. História concisa da literatura brasileira. 4ª.ed. São Paulo: Cultrix, 2006.
MENDES, Murilo. Poesia completa e prosa. Rio de Janeiro: Nova Aguiar, 1994.
_______________. Poesia liberdade. Rio de Janeiro: Record, 2001.