barbw 16/12/2023
Violências dentro da violência
Esse livro é com toda a certeza um dos livros mais difíceis que já li, tanto pelo tema, tanto como pela escolha do autor de nos contar em mais uma autoficção a violência sexual que sofreu, em um período do ano em que aprendemos socialmente ser de festas, o natal. E não só isso, em um período da vida do próprio autor, que saiu do ninho familiar já tão estranho, com um conjunto de violências por si só, que já nos contou em seu O fim de Eddy.
Édouard não é um autor de nos poupar, e nessa obra, ele não se poupa também e em momento algum.
A escolha em si de escrever o que passou e dentro dessa obra, a série de repetições que pode chegar a exaustão, do acontecimento em si do ato do estupro, como se nos colocasse em cada minuto agonizante daquele dia, em até perspectivas diferentes vindas da mesma pessoa, da vítima.
Em diversos momentos durante o livro, e de formas diferentes o autor deixa claro seu maior desejo talvez, ter o controle de sua própria narrativa, da sua dor e tornar dela o que quiser, o que puder. Isso também lhe foi tirado, e é tirado todos os dias de todas as vítimas que passaram e passam pela mesma violência.
De tornar o seu medo legítimo, perante as autoridades, família, amigos, a si mesmo.
Sua identidade foi arrancada, distorcida por tantas pessoas em tantos ambientes, e principalmente por esse ato de violência específico que é o centro desse livro.
"Eu desejava que todos soubessem, mas queria ser o único entre eles a discernir a verdade..."
A fala, a escrita, como sua arma e escudo.
E msm assim, tem os aspectos sociais permeando toda a história contada, a reprodução de discursos intolerantes a grupos específicos feitos por diferentes grupos sociais e regionais, e se colocando também como perpetuador de alguns desses discursos, atos, problematizando a si mesmo, questionando, por meio dos mais ambíguos atos e emoções interligados.
"... o ódio não precisa de indivíduos determinados para existir, tão somente de abrigos nos quais reencarnar."
As realidades paralelas que poderiam ter acontecido e não aconteceram e o que fazer, com o que restou, com os objetos seus tocados, o chuveiro que foi compartilhado, a sujeira que sente na pele, os cheiros daquela noite que não vai embora, seu próprio corpo, e a busca de justificativas que não chegam a lugar nenhum.
Solidão e desamparo nenhum são justificativas ,como um jogo para a violência.
Durante toda a leitura me perguntei até que ponto as palavras podem ser o caminho de cura, por mais belas que elas sejam como instrumento na literatura de Édouard Louis.
"... e mais tarde as palavras continuaram carregando o rastro daquela possibilidade que eles fizeram nascer na minha boca."