Lucas 10/03/2019
Romantismo literário como ferramenta de busca por uma identidade genuinamente brasileira
O romantismo literário do Brasil foi um movimento que durou quase quatro décadas, entre os anos de 1830 até meados de 1870, quando o realismo (idealizado principalmente por Machado de Assis) assumiu ares de protagonismo na literatura nacional. E se o "bruxo do Cosme Velho" possui uma posição de vanguarda e destaque no realismo (mesmo que os seus primeiros trabalhos tenham sido pautados pelo romance), o cearense José Martiniano de Alencar (1829-1877) é o maior símbolo do romantismo literário brasileiro.
A obra e a carreira literária de José de Alencar se confundem com o romantismo, e é preciso que, ao se tecer qualquer comentário sobre qualquer trabalho do autor, seja dimensionado o contexto social em que esse movimento surge. Na Europa, o romance na literatura já vinha sendo desenvolvido desde o início do século XIX, como um reflexo sentimental do simbolismo popular causado pela Revolução Francesa de 1789. A exploração dessa sentimentalidade social acaba por ilustrar adequadamente um dos principais traços do movimento: a descrição de uma sociedade a partir de uma ficção (baseada normalmente em amores conjugais ou proibidos), que partisse de um olhar para o presente e o passado, e que fosse capaz de extrair elementos que reforçam a questão sentimental, seja moldando heróis, seja construindo vilões aterrorizantes.
Foi seguindo esse roteiro que José de Alencar, que morou no Rio de Janeiro desde o final da infância, lançou aquele que é reconhecido como o seu primeiro trabalho mais relevante: o romance O Guarani, de 1857. A obra, lançada primeiro em folhetim (o que explica sua carga cinematográfica e os capítulos relativamente curtos), trata da história do índio Peri e do seu contato com a família de Dom Antônio Mariz, um fidalgo português e personagem que existiu de fato (foi um dos fundadores da cidade do Rio de Janeiro). Todavia, Alencar aqui apenas "usou" o nome e a posição social de Dom Mariz, já que as datas cronológicas do romance e da vida real do fidalgo são distintas.
Dom Antônio, na obra, era um rico senhor de posses, que possuía uma grande fazenda perto do atual Parque Nacional da Serra dos Órgãos, na região norte do estado do Rio de Janeiro. Dizer que era uma fazenda é temerário: havia uma grande construção no meio da floresta que servia de lar para a família Mariz (além de Dom Antônio, a esposa Lauriana, os filhos Diogo e Cecília, e Isabel, cujo parentesco não pode ser aqui revelado), cercado de vários "inquilinos" ou "aventureiros". O detalhe crucial é que a história se passa no início do século XVII, entre 1603 e 1604.
Enquanto os europeus olhavam para a Europa da Idade Média e faziam a sua literatura romântica (O Corcunda de Notre Dame, de 1831, excelente romance do francês Victor Hugo é uma prova disso), José de Alencar (um grande nacionalista, diga-se) procurou direcionar seu enfoque para o Brasil Colônia, ainda sob enorme influência dos colonizadores portugueses. Uma imensidade de matas virgens e paisagens lindíssimas era o que definia o território nacional na época, mas a questão mais preponderante nesse contexto na narrativa d'O Guarani é a relação entre o homem branco e o índio.
Assim, volta-se ao protagonista da obra, o índio goitacá Peri. É ele quem toma os ares de heroísmo que caracterizam a veia romântica do livro. Corajoso, destemido e ingênuo, Peri foi construído a partir da dualidade existente entre explorador x explorado e isso contribui para que ele transmita a imagem de pureza que o define. Boa parte dessa pureza advém da devoção (e não meramente amor) que ele acaba sentido por Cecília, a filha de Dom Antônio. Se as condições narrativas que criam essa devoção não podem ser citadas aqui para que evitem revelações, fato é que a relação entre a menina loura de olhos azuis e o "selvagem" indígena é uma das mais belas e puras histórias de amor que um leitor pode conhecer, capaz de sensibilizar até mesmo quem não tem o romance como gênero literário predileto.
Um elemento importante, mas secundário em termos narrativos, é a descrição de como funcionava a relação entre colonizador e seus agregados, que José de Alencar chama no livro de "aventureiros". Esta relação estava longe de ser pacífica ou até mesmo confiável, e o autor dedica parte relevante d'O Guarani em ilustrar os conflitos que poderiam advir dessa relação. Nesse sentido, surge a figura de Loredano, um desses agregados que assume ares de vilania pela sua origem e por sua ganância e Álvaro, espécie de "gerente de armas" da família e um cavalheiro honrado. Alencar insere estas relações tensas com muito mistério, que influencia o desfecho da obra (longe de ser imprevisível, mas habilmente bem construído). Peri, por razões óbvias e até pela sua personalidade, acaba sendo diretamente influenciado por essa relação entre Dom Antônio e seus "aventureiros". Além disso, o autor expande essa ligação num contexto de vingança e conflito entre tribos indígenas rivais, com costumes peculiares... É nítida em todo esse imbróglio misterioso (que enriquece positivamente a narrativa) a preocupação do autor em "nacionalizar" seus relatos, desnudando a forma com que ocorriam as primeiras explorações ao interior do Brasil e como era a "população" que aqui existia antes dos portugueses. José de Alencar carregou nisso uma grande vontade de fortalecer o país como nação independente, valorizando a sua história e origem. Tal fortalecimento, que se vê em outras obras dele de cunho regionalista, como O Gaúcho (1870) e O Sertanejo (1875), é justificado pela busca de uma identidade nacional do Brasil no século XIX, iniciada a partir da Declaração da Independência em 1822.
Patrono da cadeira 23 da Academia Brasileira de Letras, José de Alencar teve em O Guarani o seu passaporte para a eternidade literária do Brasil. Não que a obra tenha provocado uma revolução na literatura, mas deve ser louvada a sua capacidade de elaborar um romance em sua essência, com uma singela história de amor e um forte viés nacionalista. O autor, que viveu num momento de grande agitação social, buscou, ao construir uma narrativa que se passava mais de dois séculos antes, encontrar o cerne da multifacetada origem do Brasil, composta em sua maioria por portugueses e índios, sem endeusar ou criticar de forma veemente nenhum de ambos.