Memórias Willy Hoppe

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Resenhas - Memórias Willy Hoppe


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Victor.Allenspach 18/02/2020

Dançou enquanto pode
O primeiro filtro para as lembranças é o próprio cérebro, que perde no limbo das décadas, tudo aquilo que é trivial. Guardadas ficam as lembranças fortes o suficiente para flutuarem na superfície, aquelas que pescamos de tempos em tempos com um suspiro desolado.

Se a memória for vaga, que surpresa não é tropeçar em algo que estava perdido. Reencontrar uma foto, um cheiro ou uma pessoa. Emoção maior do que o próprio passado e que vem carregada da nostalgia de tudo o que não é mais.

Esquecer é ruim, mas lembrar pela metade pode ser ainda pior. Quem era aquela pessoa? Estivemos juntos? A quem pertence o perfume que surge no cruzamento? Por que aquele nome sem face não sai da cabeça?

Livros de memória contam muito, principalmente daquilo que não pretendem. Da mesma forma que a Bíblia incomoda por não descrever a juventude de Jesus, não passa despercebida a ausência de uma faculdade, uma profissão ou um amor. A omissão é uma escolha ou um equívoco?

Recentemente chegaram até mim as curiosas memórias de meu bisavô, que foram traduzidas do alemão e resgatadas com muito cuidado de seus manuscritos. Publicadas por sua neta Márcia Klann Milla no livro "Memórias, Willy Hoppe", reúnem os relatos de um personagem e de toda a sua geração.

Em um outro Brasil, Willy minerou, derrubou árvores e pescou com dinamite (sim, isso existia), maltratando a brava natureza, muito diferente da realidade domesticada e fragilizada que chegou até nós. Procurou bambúrrios que não vieram, e foi tantas vezes passado para trás, que é difícil não se identificar. Detestamos os seus vigaristas, como se assim perdoássemos a nossa própria ingenuidade.

Índios defendiam o território desses invasores de outro planeta. Sequestravam e eram sequestrados, matavam e morriam, resgatavam e afugentavam. O convívio improvável era regra, construindo uma realidade surreal de conflito e altruísmo. Mímica era a comunicação entre povos tão distantes, ainda que os risos fossem fáceis de interpretar (como quando índios se acumularam na margem de um rio para gargalhar de alemães encharcados e uma canoa virada).

A morte era frequente e provável. Impressionante para o olhar moderno, incapaz de compreender tanta violência e doença descritas como coisas mundanas e pouco trágicas. Sem hospitais e estrutura, a medicina rudimentar dependia de injeções mágicas, como placebos universais. O bem estar dos operários e ajudantes não era motivo para preocupação e acidentes de trabalho eram frequentes ou um caminho sem volta.

Mesmo sem intenção, os relatos de meu bisavô contam sobre o papel da música para uma sociedade que ainda não conhecia televisores. Era essa uma das poucas formas de diversão nas colônias simples e humildes que surgiam no interior do Brasil, entretendo, seduzindo e aproximando.

Dançando, Willy se distraiu da dureza da vida, conheceu amores e pertenceu a sua época. Dançou, enquanto pode, para que a vida valesse a pena.

site: https://medium.com/@victorallenspach
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Bruna.Ceccato 05/03/2024

Que obra gostosa de se ler. Willy Hoppe seria irmão de meu bisavô, Robert Hoppe, e foi por intermédio da família que este exemplar chegou em minhas mãos. Como leitora ávida por história, devorei suas memórias em curto período de tempo, em partes também motivada pela vontade de saber sobre o meu antepassado.
Há muito que se discutir sobre as memórias que Willy colocou em papel. De forma mais técnica, senti falta de mais notas de rodapé. Marcia, a tradutora fez um trabalho excelente ao transcrever para o português sua obra que foi escrita em alemão arcaico, e mais excelente ainda ao confirmar muitos fatos com sua pesquisa histórica. Porém ao meu ver , senti muita falta de algumas explicações em passagens de tempo que acabaram ficando confusas.
Willy escreveu da forma que nossos avós nos contavam histórias. Se você teve essa experiência durante a infância, sabe que muitos "causos" começavam com "uma vez aconteceu..." e nem sempre seguiam uma ordem cronológica. E é isso que Willy fez, colocou no papel tudo que lembrava , conforme lembrava. Não que isso seja ruim, pois o livro se torna maravilhoso de ler justamente por esse motivo, pois me senti o tempo todo como se estivesse ouvindo a história dele mesmo, da maneira que a prosa conversa com o leitor. Mas, teria sido ótimo ter umas notas explicativas, pois em determinado momento ele conta sobre a morte de um filho, mas somente conta como conheceu a esposa nos últimos capítulos, e é ai que acredito que teria sido muito proveitoso algumas explicações para nós leitores que não sabemos do resto da história.
Suas memórias mesmo quando contam momentos tristes, são tão bem contadas que ao chegar a última página não acreditei que tinha acabado. Inclusive perguntei ao meu tio que me emprestou o livro, cadê o resto? E detalhe que Willy não era escolarizado. Imaginem se este homem tivesse mais estudo e se dedicado mais tempo para a escrita.
São tantas camadas para discutir sobre suas memórias. Mesmo não sendo sua intenção original, seus relatos trazem certa luz a muitas questões sociais. Iniciando pela vida na Alemanha, o que mais me chamou atenção foi a forma que a infância era diminuída pela sociedade. Há tantas passagens sobre como crianças eram tratadas com pouca dignidade. Willy conta que primeiro apanhavam, depois perguntavam suas versões dos fatos. Existia uma certa legitimidade para qualquer estranho se sentir no direito de agredir os filhos dos outros, como por exemplo, quando um estranho ao vê-lo com uma cesta de cerejas (que ele colheu trabalhando com seus irmãos), concluiu que estas eram roubadas, bateu nele e só depois pediu onde ele havia conseguido. Não que isso viesse de sua família (pelo menos não há nenhuma passagem contando que eles apanhavam dos pais), mas devido ao contexto, da para se concluir que os Hoppe possuíam uma visão bem diferente sobre cuidar e educar seus filhos, algo que destoava da sociedade da época.
Quando Willy começa a relatar sobre a vinda para o Brasil, temos a visão e o choque que esses imigrantes sofreram. Com uma propaganda irreal da colônia, onde muitos esperavam achar um paraíso, eles chegaram aqui e se depararam com fome, frio, falta de segurança, algo totalmente diferente dessa visão.
"A mãe voltou a xingar novamente e se assentou à barranca do rio e começou a chorar. Meu pai teve um trabalhão para tirar ela dali... ela queria se afogar no rio."
Imagino o desespero dessa mulher, que tinha uma penca de crianças em sua responsabilidade, enfrentando de cara a realidade. A todo momento, mesmo sendo memórias do Willy, não pude parar de reparar e pensar nessas mulheres. Robert pai assentou os filhos e a esposa em um lugar longe, e foi arranjar emprego, ficando meses fora e deixando-os para que se virassem. Willy também conta sobre várias outras mulheres que sofriam muito, seja pela vida difícil de colonizar, como também pelo machismo da época. Houveram vários relatos de assédio que ele presenciou, e me surpreendi ao ler que mesmo pertencendo a outro tempo, ele não concordava e inclusive ajudou algumas, arranjando até brigas. A história que mais me chocou foi a que dois homens importunaram uma moça para que ela bebesse cerveja, e dois dias após isso ela morreu. Como assim Willy? o que realmente aconteceu? Ela era alérgica? Colocaram algo na sua bebida? Infelizmente é tarde para enche-lo de perguntas.
Sua história também é repleta de violência. É algo cru, não há floreios. Até porque infelizmente a vida deles era assim. Haviam brigas que levavam a facadas e tiros pelas mais diversas desavenças, caça e um retrato bem diferente da consciência que temos hoje com relação aos animais. Por isso considero sua obra com um enorme valor histórico cultural, pois demonstra o retrato de uma geração que era bruta, e precisou ser para sobreviver.
Agora o melhor do livro, com toda certeza é a parte dos relatos sobre os indígenas. Que riqueza que ele nos proporcionou. Acredito que poderia escrever páginas e mais páginas só para debater e pesquisar afundo os relatos que ele fez. O quanto os indígenas de Presidente Getúlio e José Boiteux sofreram. E Willy não concordava com essa caçada em seu intimo, algo revolucionário para o pensamento de um colono, cujo estava inserido em um meio que os consideravam um problema a ser exterminado. Saber que haviam indígenas no Rio Ferro e não nos ensinam na escola, sequer mencionam é muito triste. O apagamento dessas culturas é sistemático, é um projeto que os persegue até hoje. E Willy deixa claro, os indígenas somente estavam defendendo o que era seu. Aliás, a minha história favorita é deles virando a canoa e os indígenas dando risada na beira do rio. E infelizmente é onde há as passagens mais pesadas, pois há muita morte, há muita perseguição.
Quem dera Robert também tivesse feito um diário no final de sua vida. O quanto meu bisavô poderia ter acrescentado a história junto com seu irmão Willy.
Com toda certeza recomendarei a leitura, e parabéns a Marcia que tornou essa leitura possível.


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