Raphael 27/07/2014
O contraste superficial.
"A Cidade e as Serras" se tornou leitura obrigatória para milhares de pessoas após entrar na lista dos principais vestibulares do país. Tratando-se de uma obra de Eça de Queirós, brilhante escritor realista, esperava-se que a leitura fluiria de maneira apreciável e que a obra seria uma fonte de prazer para todos aqueles que deveriam lê-la apenas para o vestibular. Ledo engano...Eça não só foca em temas monótonos, clichês e usuais mas também revolta-se totalmente com toda a sua mentalidade a respeito do progresso, da tecnologia e da racionalidade.
O fato de o escritor mudar seu pensamento e o alvo de sua crítica bem no final de sua vida, leva-se em conta que a obra foi publicada postumamente, pode até causar estranhamento ao leitor que já leu "O Crime do Padre Amaro", "O Primo Basílio" ou qualquer outra obra anterior de Eça, mas o que realmente causa repulsa e crítica ao livro é a superficialidade em que é tratado o contraste entre o campo e a cidade, a narrativa enrolada e desconexa que aparenta ser uma desculpa para jogar pensamentos filosóficos e citações culturais aleatórias com intuito de enfeitar a obra e não solidificá-la, os personagens psicologicamente simples e artificiais etc..
Como sinopse, o livro trata da vida de Jacinto - pessoa de origem portuguesa que vive em Paris desde que nasceu e que, inicialmente, é totalmente deslumbrada com a tecnologia, o luxo e a racionalidade que as cidades modernas proporcionam - e de Zé Fernandes - narrador da obra, que é averso ao cenário moderno em que vive e às filosofias de seu melhor amigo Jacinto. A obra apresenta os dois pontos contrastantes personificados em Paris, cidade-luz e símbolo do progresso e da civilização, e Tormes, cidade portuguesa totalmente rural e afastada do luxo civil.
Ao analisar a sinopse apresentada, já fica claro o que virá pela frente para qualquer leitor que, ao menos, tenha assistido a algum filme infanto-juvenil tratando de pessoas do campo e da cidade: alguma pessoa mesquinha da cidade irá para o campo e aprenderá coisas novas por lá, mudando sua concepção inicial e sendo confrontada com o que acreditava. E não é que é isso mesmo? Eça não inova em nada, levando-se em conta inclusive a época em que o livro foi publicado, pois trata desse contraste exatamente da forma que é esperada; e o pior: trata-o de maneira superficial. A cidade, no livro, é mostrada somente como sinônimo de luxúria, progresso, artificialidade e sedução, assim como o campo é sinônimo de precariedade, paz, conforto e idealismo. Sim, deve-se considerar que Eça fez esse critério baseando-se naquilo que observava em sua época, mas mesmo assim existem aspectos muito mais complexos e racionais que poderiam ser focados na obra, como os meios de interação entre esses dois locais e as relações de interdependência que estabelecem, inclusive para mudar o final bem idealizado que o escritor apresenta.
Os personagens parecem ser reflexos de estereótipos artificiais feitos às pressas pelo escritor. Jacinto é o principal exemplo; é surpreendente como sua concepção sobre o campo muda de um dia pro outro sem complexidade alguma. Primeiro, apresenta-se um Jacinto progressista, futurista e fiel em acreditar nos progressos urbanos; depois, Jacinto entedia-se com tudo o que a cidade proporciona, sem nenhum motivo aparente inclusive; e por fim, Jacinto encontra no campo o local ideal para ele simplesmente com alguns dias de contemplação rural. É inquietante como esse retrato é bem artificial, diferente, por exemplo, de personagens de obras machadianas. Zé Fernandes é outro mistério: é estranha a obsessão que o personagem apresenta por Jacinto e a amizade dos dois lembra continuamente uma relação amorosa, como entre duas pessoas apaixonadas - há estranheza quando os dois estão a observar as estrelas deitados perto um do outro, quando Zé Fernandes elogia a beleza e os aspectos físicos de Jacinto várias vezes e quando há inclusive compartilhamento de roupas íntimas entre os dois. Isso acaba intrigando o leitor, pois se Eça quisesse tratar de uma relação entre dois amigos apenas, por que tantas referências íntimas e duvidosas entre os personagens?
Como se não bastassem todas as críticas já feitas, há ainda a principal, cujos leitores mais reclamam: a enrolação. Ao finalizar o livro, conclui-se que não há a necessidade de todas aquelas páginas para contar essa história. Com apenas dois capítulos poderia-se criar uma paráfrase fiel e detalhada da obra. Não é à toa que muitas pessoas demoram para terminar o livro ou até desistem.
Seria, portanto, o livro totalmente dispensável a ponto de não ter nenhuma qualidade considerável? Por incrível que pareça, não. O livro possui sim seus pontos fortes, como por exemplo a escrita impecável de Eça de Queirós que, mesmo monótona, impressiona por sua minuciosidade e beleza. Existem também as referências filosóficas, bibliográficas, religiosas e históricas apresentadas, que impressionam os leitores e atestam a capacidade incrível de Eça e o seu enorme conhecimento. Para finalizar, o senso crítico de Eça e sua ironia estão bem afiados na obra, principalmente ao tratar da cidade; mesmo sendo simples, esses aspectos dão um pequeno brilho à obra e relembram o leitor de qual escritor ele está lendo. Percebe-se, então, que todas as qualidades estão no escritor e na sua maneira de escrever e não na obra em si.
Portanto, "A Cidade e as Serras" é o tipo de livro que é lido somente com uma finalidade especifica, seja para fazer vestibular, seja para conhecer o escritor. Mesmo assim, é um livro monótono, cansativo e desconexo, fadado na superficialidade e que não reflete nem metade daquilo que Eça de Queirós é capaz. Se alguém, por vontade própria, for se aventurar nas páginas desse "manual do sono", é aconselhável relacionar a obra com a atualidade para distrair-se e terminar o livro, pois a obra até que pode ser encaixada na realidade atual, mesmo que de maneira simplista.