Ana Paula 06/03/2022
Deixe-me ir...
Quanto tempo dura um luto? Existe um “bom luto”? A morte, e consequentemente o luto que com ela vem (mas, não só dela), é o que traz sentido a vida. Por isso, muito já se disse sobre a lucidez do fim da vida, a clareza diante da escuridão eterna. Enquanto vivos, só podemos ser expectadores da morte dos que partem, mesmo que protagonistas em nosso próprio sofrimento. Diante da morte dos outros, podemos, se perto e disponíveis o suficiente, adentrar um pouco neste grande mistério, não para respostas, mas para nos fazermos perguntas. As perguntas que paradoxalmente nos imobilizam e movem. Valeu a pena a minha vida? Qual o sentido da minha existência? São estas questões essenciais que todos nos fazemos de tempos em tempos, ou deveríamos nos fazer. Não é exatamente responder estas perguntas o que motivou a brilhante escritora Isabel Allende a escrever Paula, foi seu amor por sua filha (cujo nome dá título ao livro). Porém, de certa forma é isto que Allende faz. O novelo emaranhado de lã, cheio de nós de múltiplos fios de sua vida vai sendo aos poucos desemaranhado diante do leitor. Ao final não temos, no entanto, um monte de fios soltos desconexos, mas a mais perfeita harmonia em paz com o caos próprio da existência.
Paula é a filha de Isabel Allende. É também uma pessoa inteira e sua própria que deixou uma legião de pessoas tocadas por seu amor. Assim, Isabel é a mãe de Paula, mas também sua própria pessoa. É a pessoa de Isabel que, dilacerada em dor, se expõem, se desmancha em cada página.
Quando sua filha Paula, entra em coma como consequência da porfiria, uma doença rara incurável, Isabel é aconselhada a escrever. Não para publicar, mas para conseguir se comunicar consigo e com sua filha. Escrevendo uma carta para Paula, Isabel intercala toda a história de sua família, até onde sua memória consegue chegar, sua própria história, a história de seu país e de seus muitos lares, com passagens do momento presente da escrita, acompanhando o lento processo do morrer de Paula. Assim como, a aceitação da finitude e de nossa passividade diante da morte. Deixe-me ir, pede Paula, e deixar ir é o mais puro e difícil ato de amor.
Este é um livro belíssimo e rico, porque muito honesto e pungente. Não há espaço para verossimilhança, como a própria autora diz, por ser a vida real tantas vezes impossível. Nesta obra conheceremos essa mulher extraordinária que é Isabel Allende. Também conheceremos o Chile pré e durante o início da ditadura militar, o exílio político e o regresso da democracia após o plebiscito popular que finalmente tirou Pinochet do poder. É um livro, portanto, de fôlego, e isso transborda de Allende. A vida de Isabel, filha de diplomatas, a leva a muitos outros países e suas aventuras amorosas a tantos outros. Descobrimos a escritora, suas fontes de inspiração e modo apaixonado de viver. É um livro de releitura, que a farei com imenso prazer, como que a reencontrar uma grande amiga.
É certamente, um livro sobre luto, que não tem prazo de validade e não é “bom”. Porém, a arte tem essa magia de transformar a dor em algo belo, imitando a vida e vice-versa e é sobre isso, também, este livro e a vida de Paula.
“Escrevo procurando um sinal, esperando que a Paula rompa o seu implacável silêncio e me responda sem voz nestas folhas amarelas, ou talvez o faça apenas para me sobrepor ao espanto e fixar as imagens fugazes de minha memória.”