Marcelo Rissi 17/02/2021
O processo (Franz Kafka).
Somam-se alguns anos desde que li ?O processo?, magnífica obra ? quiçá a ?Magnum opus? ? escrita pelo renomado autor tcheco ?Franz Kafka?. Impeli-me a esse objetivo não apenas por sugestão e incentivo do meu saudoso pai, mas também ? e, sobretudo ? por influência de um professor de direito processual civil que, logo na primeira aula (em 2006, para ser mais preciso, quando eu estava no segundo ano de faculdade), sublinhou a importância de conhecer esse trabalho, especialmente pelos estudantes e, em geral, pelos operadores do direito. Lembro-me, aliás, com nitidez, da categórica ênfase conferida a essa ?conclamação?, a partir da qual, inclusive, o professor inaugurou a primeira aula, voltada ao estudo dos princípios processuais (tema intimamente correlacionado ao assunto abordado nessa obra, ?O processo?).
À época, confesso, não creditei grande importância ao desafio proposto. Desde então, contudo, as palavras daquele professor sempre me fizeram eco e ruído, o que, admito, me desassossegava (e esse é, afinal, um dos papéis de um bom professor: instigar o aluno ao desafio e ao desconforto. À iniciativa. Ao raciocínio crítico e ao exercício dialógico de interdisciplinaridade. Às perguntas e não às respostas preestabelecidas).
Graduei-me em 2009, mas apenas alguns anos mais tarde (em 2016, salvo melhor juízo) ?enfrentei? a leitura de ?O processo?, ainda incomodado por não ter, até aquela ocasião, me debruçado sobre obra tão relevante, especialmente (embora não exclusivamente) no campo do direito. Ao finalizar a leitura, agradeci intimamente aqueles que me instigaram a conhecê-la.
O espaço de tempo que me separa do período que tive contato com a obra, conforme apontado, já soma aproximadamente 5 (cinco) anos. Não me sinto, assim, habilitado à elaboração de uma resenha propriamente dita, pois diversos detalhes já desvaneceram. De todo modo, reputo preservar, com relativa clareza, a ideia e a mensagem central da narrativa e, em razão disso, proponho-me à consignação de alguns breves apontamentos ? sem ?spoilers? ? para contextualização do enredo, para análise crítica das implicações originadas a partir da situação narrada e, sobretudo, se possível, para instigação à leitura, à semelhança do valiosíssimo incentivo que recebi.
Lançado em 1925, ?O processo? conjuga os elementos típicos que caracterizam a produção literária de Franz Kafka, autor notavelmente reconhecido pela elaboração de narrativas absurdas e pelo desenvolvimento de situações e cenas levadas a extremos e, assim, à irrealidade (será?).
Em ?O processo?, a narrativa se inicia no dia de aniversário do personagem central, Josef K., que, logo pela manhã, é despertado por agentes públicos que cumpriam mandado de prisão expedido em seu desfavor. Em vez do encarceramento imediato, porém, Josef K. foi agraciado, pouco depois, com o direito de responder à ?acusação? em liberdade, mediante o cumprimento de restrições (em situação jurídica semelhante, em minha leitura e interpretação, às medidas cautelares intermediárias diversas da prisão, previstas no Código de Processo Penal como alternativas à segregação preventiva). Mas, afinal, que acusação? É justamente essa pergunta que, pairando misteriosa, permeia o enredo e angustia não apenas Josef K., mas o próprio leitor (que, ao longo da narrativa, é defrontado, cada vez mais, com incontáveis perguntas e incógnitas, sem respostas).
Inicia-se, então, para Josef K., uma aflitiva saga repleta de impasses. O personagem, apesar de seu incansável empenho, não obteve acesso à peça de acusação formal elaborada em seu desfavor. É dizer: o personagem não conhecia sequer o teor da imputação que pesava contra si, em claro vilipêndio a princípios processuais básicos, como o contraditório, a ampla defesa e a publicidade dos atos judiciais, corolários do devido processo legal.
Em determinado momento da narrativa, o personagem, então, recebeu uma intimação para comparecimento a um interrogatório, oportunidade em que lhe seria oportunizado, se assim o desejasse, o exercício da autodefesa, com a apresentação de sua versão dos fatos (que fatos?). A situação, porém, era não apenas peculiar, mas insólita: o mandado de intimação não continha data e horário para o ato processual (interrogatório), tampouco o endereço do tribunal!
Desconcertado, o personagem percorreu, a partir de então, uma verdadeira ?via crucis? para localização do tribunal. Chegando, finalmente, ao vetusto ambiente repleto de pessoas, Josef K. foi severamente repreendido por seu ?atraso?, mas a ?incúria? foi, de todo modo, relevada pelos julgadores, que, então, designaram nova data para interrogatório, ao qual, dessa vez, o personagem compareceu. O principal e mais angustiante óbice, porém, ainda subsistia: Josef K. desconhecia o próprio teor da acusação.
Para superação desse inusitado impasse, Josef K., sem visualizar alternativa, idealizou a ?estratégia? de se defender de todas as situações que, em sua vida, reputou ter agido mal. Assim, Josef K. considerou ? ou, ao menos, imaginou ? que, em algum momento de seu discurso, ele finalmente abordaria o desconhecido objeto da acusação ? cujo teor, repita-se, lhe fora, até então, completamente sonegado ?, defendendo-se, em algum momento, da imputação que pesava contra si, qualquer que fosse ela.
Josef K., assim, iniciou a sua sustentação oral, desenvolvendo a autodefesa em discurso apaixonado ao qual agregou, ainda, críticas severas e inflamadas, mas justas ? frequentemente atalhadas e admoestadas pelos julgadores ? contra o sistema de justiça, tão falho e tão iníquo ao personagem naquele contexto e naquelas condições.
Essa é a tônica que, em apertada síntese, norteia a obra. Avançar na sumarização do enredo é arriscar-se à emissão de indesejáveis ?spoilers?, de modo que, quanto à narrativa em si, abstenho-me de outras considerações.
Escapando, porém, à órbita da análise da história em si, objetivamente narrada, e partindo para uma investigação mais ampla da obra ? perscrutando, sobretudo, a mensagem proposta pelo autor nas entrelinhas, por trás do enredo ?, há alguns pontos que convidam a importantíssimas reflexões críticas.
A produção literária de Kafka é marcantemente caracterizada pelo absurdo. As situações narradas pelo autor ? nesta obra e, no geral, em todas as outras do escritor ? são levadas a extremos. Em interpretação puramente pessoal, acredito que o objetivo seja o de, justamente, evidenciar e escancarar o risco maléfico, potencial ou real, que qualquer situação viciada na origem pode, não sanada, provocar.
Especificamente em relação à obra ?O processo?, o autor desenvolveu as características típicas de sua produção literária ? centrada no absurdo ?, projetando-as na análise do sistema de justiça.
O enredo desenvolvido em ?O processo?, como se nota, se caracteriza pelo irracional. A situação é atípica. É insólita. É, sobretudo, absurda. As circunstâncias da narrativa (especialmente porque levadas a extremos) permitem, porém, profundas reflexões sobre a fundamental e irrenunciável importância de respeito ao devido processo legal e aos diversos princípios constitucionais em âmbito do processo judicial. Esse debate, evidentemente, não se limita ao contexto espacial e temporal da narrativa. Ao contrário: incentiva a reflexões atuais e sumamente relevantes acerca de temas afetos a direito processual e às garantias mínimas asseguradas a todo cidadão num processo judicial, ou mesmo fora dele. E é sobretudo sob esse último aspecto que a obra extrapola o interesse meramente jurídico e, em consequência, instiga a reflexões afetas ao próprio exercício da cidadania (debate que a todos interessa).
?O processo? evidencia, como etapa necessária e fundamental à efetivação e à materialização dos ditames do devido processo legal, a necessidade de respeito a princípios constitucionais/processuais básicos, caros e comezinhos, como o contraditório, a ampla defesa, o direito à defesa técnica, a publicidade dos atos processuais, a lealdade processual, a boa-fé, a razoabilidade e a fundamentação das decisões judiciais (se houve motivação dos atos processuais, os respectivos teores foram sonegados do personagem, como lhe foi sonegado, no geral, todo o conteúdo da acusação).
A obra permite, ainda, subjacentes reflexões atinentes à necessidade de respeito à dignidade humana, garantia claramente subtraída, em diversos aspectos e níveis, do personagem, seja pela forma como o processo foi conduzido, seja pelo modo como o personagem foi tratado.
A obra também oportuniza, em certos aspectos, reflexões acerca da necessidade de proibição de determinadas modalidades de penas.
Anos após aquela ?conclamação? que, desde a faculdade, me fez tanto ruído e eco, compreendi, após a leitura de ?O processo?, a sua importância e o seu inestimável valor, essencial não apenas aos operadores do direito, mas a todos aqueles que desejam construir, a partir de uma análise crítica, uma visão humana do processo (lembrando que, por trás dos calhamaços e da crueza de papéis, dos carimbos, das formalidades e das solenidades, há vidas, pessoas, histórias, angústias e aflições que aguardam e confiam no Poder Judiciário, como derradeira trincheira, a justa solução dos conflitos).
Recomendo enfaticamente a leitura dessa obra.