spoiler visualizarUlysses.Rubin 25/03/2014
Épico inigualável
"Por que, Morgana perguntava-se, tem de ser assim? Tinha a ver com o conhecimento de que o mundo era como era por causa daquilo em que os homens acreditavam que era... ano após ano, nestas últimas três ou quatro gerações, a mente dos homens endurecera-se, passando a crer que havia um deus, um mundo, um modo de descrever a realidade, que todas as coisas que se intrometessem no reino dessa grande unidade tinham de ser más e demoníacas, e que o som de seus sinos e a sombra de seus lugares santos manteriam o mal afastado. E como mais pessoas acreditavam nisso, era assim, e Avalon não passava de um sonho à deriva em um mundo quase inacessível."
Passaram-se alguns dias desde que terminei de ler essa saga, já li outros livros desde então, mas continuo sob o feitiço da obra de Marion Zimmer Bradley.
Não entendo quem reclama que os personagens masculinos tiveram pouco destaque ou que Bradley faz críticas ao cristianismo. Ora, a proposta não é justamente inverter a lógica das lendas arturianas? Nas histórias que sempre ouvimos sobre o tema, as mulheres não eram meras coadjuvantes e as religiões pagãs não eram tratadas como bruxaria, abominação, satanismo?
Pra falar a verdade, o que Bradley faz não é uma simples inversão. Lendo com a mente aberta, despido de preconceitos, não há como não notar o cuidado com que a autora elaborou personagens como Artur e Lancelote. Não concordo que Artur seja "fraco", penso que o retrato do lendário rei nessa obra é um dos mais críveis, do ponto de vista humano. Ele ainda é um grande líder e guerreiro, um homem gloriosamente amado por seus súditos e companheiros, mas é também um ser imperfeito, com suas inseguranças, dúvidas e medos. Me emocionei muito com o desfecho dado a esse personagem tão falho, mas tão generoso e bem intencionado, prova do quão hábil Bradley foi em torná-lo uma figura palpável.
Da mesma maneira, sua ambigua relação com Lancelote é um dos grandes achados da obra, já que adiciona novas camadas de compreensão a todos os principais acontecimentos envolvendo esses personagens e Guinevere. O Lancelote de Bradley é também imensamente carismático. Compartilhando do odio geral - embora não inabalável - contra Guinevere, torci para que Lancelote e Morgana tivessem ao menos um momento íntimo mais, digamos, completo, mesmo que fosse obvio, embora não totalmente previsível em seus desdobramentos, o caminho para o qual esse dilema se dirigia.
"Com estes cristãos, que vieram até nós para escaparem à perseguição de sua própria espécie, eu, finalmente, aprendi algo sobre o Nazareno, o filho do carpinteiro que obtivera a Divindade em sua vida e pregava uma lei de tolerância; então comecei a perceber que minha briga nunca fora com cristo, mas com seus padres tolos e mesquinhos, que confundiam sua própria estreiteza com a grandeza d'Ele."
Tão importante quanto notar o cuidado na elaboração dos coadjuvantes masculinos, é perceber o respeito que a autora dedica aos cristãos. Sim! Sua crítica, enfim, não é à crença cristã, mas à maneira como homens nada espiritualizados se apropriaram dessas crenças para influenciar o povo, levando a uma gradativa destruição das outras fés, algo que afetou também a muitos cristãos, ao menos aos verdadeiros, que realmente compreenderam a mensagem de Cristo. Quem são os verdadeiros hereges, senão aqueles que se utilizam do nome de Cristo para pregar a intolerância, a violência e a repressão?
As discussões teológicas e filosóficas que a autora propõe são deliciosas em suas possibilidades. Que criatura ponderada poderia negar a triste veracidade da citação a seguir?
"Não, pensou Nimue, não acredito que os grandes iluminados, como Cristo, venham mais de uma vez, depois de muitas vidas passadas adquirindo sabedoria, e então eles se vão para sempre na eternidade; mas creio que os divinos enviarão outros grandes mestres para pregarem a verdade à humanidade, e que a humanidade recebê-los-á sempre com a cruz, o fogo e as pedras."
Compreender Avalon é perceber o quanto todas as religiões são essencialmente idênticas em sua origem e objetivo. Todos buscamos a mesma coisa, mas será que todos estamos procurando da maneira mais correta e justa?
É claro que, no que diz respeito aos personagens, o grande atrativo da obra sào as mulheres. Que linda a ideia de recontar a historia de maneira a mostrar o quanto a ação das grandes mães e esposas é decisiva na jornada dos guerreiros.
Quanta sensibilidade Bradley dedicou ao retrato da sexualidade. As cenas mais íntimas transbordam sensualidade e transmitem uma noção de que o sexo é sim sagrado, belo, espiritual.
A odiada Guinevere é, na verdade, uma personagem complexa e mesmo a repulsa que a maioria de seus atos causa é fundamental para as discussões que a trama levanta. Ela inveja Morgana, por esta ter tido a instrução que não era permitida a uma moça cristã, e em diversos momentos fica claro que é justamente essa falta de educação que a leva a aceitar com tanta facilidade as ardilosas verdades que os padres lhe empurram. Guinevere é também uma personagem que está sempre se questionando, inclusive em relação à fé. Ao mesmo tempo em que quer acreditar que a existência feminina tem que ser sofrida, pelo fato de que, segundo sua religião, a mulher trouxe todo o pecado ao mundo, Guinevere se pergunta se é realmente justo que seja impedida de viver de acordo com seus desejos e sentimentos, tão naturais, tão sinceros. Outra coisa que não se pode afirmar é que ela não tenha amado ninguém além de Lancelote. No fim, fica claro que Guinevere distribuiu tanto amor quanto pôde, inclusive a Artur e Morgana.
Quanto a Morgana, como resumir a grandiosidade de tal personagem? A cada obstáculo enfrentado por ela, me apaixonava mais por essa mulher verdadeira e apaixonada. Foi ela que me fez amar os demais personagens, através do amor que a própria sentia por eles, com todas as suas imperfeições e dualidades. Foi por meio dela que sofri com as tragédias recaídas sobre os dois reinos, a discórdia, a torpeza e o ódio que condenaram esses personagens a quem tanto amei.
O desfecho de sua jornada me fez molhar as páginas finais do livro. Há tempos não me emocionava tanto com uma leitura. O destino trágico dos Cavaleiros da Távola Redonda é um reflexo do erro crucial que cometeram: procurar a espiritualidade fora de si mesmos, algo que Artur acaba entendendo, infelizmente tarde demais. Já Morgana, cada vez mais solitária diante do desaparecimento gradativo das duas realidades que conhecera, tem a chance de perceber, após décadas de luta, que ainda havia verdades que não conhecia.
Morgana conquista a sabedoria necessária para entender que sua religião também não era lá tão justa (algo que fica explícito principalmente no episódio que dá título a este quarto livro). Se ela é capaz de sentir a presença da Deusa dentro e uma capela cristã - numa cena linda onde percebe que as freiras são mais parecidas com as sacerdotisas de Avalon do que ela considerava - então por que não crer que os verdadeiros cristãos seriam capazes de sentir seu Deus em qualquerr lugar, não apenas em templos ou com a ajuda de um livro? Todos os deuses, afinal, são um só. Os sábios é que se referem a eles por muitos nomes.
Só com a maturidade Morgana entendeu que a tal verdade única é mais óbvia e fácil de compreender do que qualquer religião criada por seres humanos poderia ensinar.
Nem Avalon, nem Camelot foram capazes de viver de acordo com tão clara verdade, sendo ambas consumidas pela névoa que as varreu para fora do novo mundo que nascia. Como são lindas as metáforas de Bradley! Se no início, Avalon só existia numa dimensào paralela, para representar a maneira como o cristianismo buscava exterminar as outras religiões, no fim as duas realidades acabam por se unir. Só que, ironicamente, se uniram na decadência.
O cristianismo acaba vencendo, varrendo Avalon e Camelot - cuja tragédia era não ser "pura", já que a maioria de seus reis e rainhas tinham sangue de Avalon em suas veias - para fora do mundo. Ainda assim, o final dessa monumental saga de Marion Zimmer Bradley não é pessimista. Morgana sente que a Deusa continua presente no mundo.
A Deusa, afinal é a vida, a natureza, dentro da qual há espaço para todas as verdades. Os personagens que acompanhamos por tantos anos são como as flores que Morgana observa no final. Os vimos nascer, desabrochar e ceder à força implacável do tempo. Morgana não têm razão para deixar de crer que, junto com as novas flores que nascem, nascerão outros seres humanos dispostos a descobrir a verdade e viver de acordo com ela, buscando trazer harmonia e justiça ao mundo.
Uma obra verdadeiramente grandiosa, emocionante e reflexiva. Revisitarei com toda a certeza.