Ana 31/12/2020
Acho deveras interessante quando a gente termina um livro e não consegue avaliá-lo simplesmente porque os pontos positivos e negativos são extremamente equilibrados. Poucas leituras que fiz na vida me deixaram tão divida quanto O Refúgio, e vou tentar colocar em palavras o que eu senti aqui nessa resenha. Ah, justamente por isso vou soltar uns bons spoilers, então quem tiver interesse na história, é bom não passar do terceiro ou quarto parágrafo.
Esse livro conta a história de Sal, uma menina de 13 anos com muitas responsabilidades. Além de ter que cuidar de si, é praticamente responsável por Peppa, sua irmã mais nova, já que mãe passa 70% do tempo bêbada — e os outros 30% derrubada por conta da bebida. Como se a ausência da mãe já não fosse difícil o suficiente, Sal é abusada sexualmente pelo padrasto desde os 10 anos de idade e entra em desespero só de pensar que a mesma coisa pode acontecer com Peppa.
Sendo assim, Sal não vê outra alternativa: elas vão fugir de casa, juntas. A menina passa meses fazendo pesquisas na internet sobre como sobreviver na floresta e aproveita os cartões roubados do padrasto para comprar tudo o que elas vão precisar para ficar minimamente confortáveis. E assim, em um dia como qualquer outro, elas partem sem que ninguém veja, ninguém desconfie.
Bom... Não nego que o que me chamou atenção para essa história foi o enredo envolvendo o abuso sexual. Obviamente não é algo que eu goste, muito pelo contrário, mas é uma situação real, é algo que acontece o tempo inteiro e, na maioria das vezes, nem damos notícia. Então, na minha concepção, tramas como a de Mick Kitson podem funcionar muito bem como forma de identificação e denúncia. Porém, acho que o autor pecou bastante justamente na questão do realismo.
Em primeiro lugar, e aqui vai o primeiro spoiler, Sal passa meses não só pensando em como fugir, mas também em como matar Robert, o pedófilo. E ela consegue, de forma bem bruta, inclusive. E apesar disso realmente acontecer muitas vezes, uma criança chegar a esse extremo de tristeza e desespero, fica difícil para mim imaginá-la cortando o pescoço de um homem adulto e não só isso, sabendo exatamente onde cortar só de ter feito pesquisas na internet.
Da mesma forma, pra mim foi muito surreal ver duas meninas de 13 e 10 anos vivendo no meio da floresta sem praticamente nenhum empecilho. Por exemplo, Sal sabia praticamente tudo, desde ascender fogueiras sem auxílio de fogo a montar abrigos perfeitos impermeáveis; sabia como montar armadilhas para pegar coelhos e como atirar em pássaros, sabia como usar sua faca super afiada para tirar a pele de animais e como cozinhá-los sem dificuldade nenhuma. E como? Estudando pela internet. Gente, não tem condições... Não tem condições conseguir fazer perfeitamente tantas coisas só de ler, sem ter prática nenhuma, entendem?
Em contrapartida, a narrativa de Kitson é tão boa, mas tão boa, que quase me fez acreditar que, realmente, uma criança de 13 anos consegue realizar essa ações. E convenhamos que essa característica não é para poucos. Pode parecer um pouco controverso e estranho, mas nem todos os autores conseguem ter o domínio tão perfeito sob sua criação. Essa característica, essa narrativa tão marcante e fluida, só demonstra muita técnica por parte do autor.
Então é basicamente isso. Não sei como me sinto em relação a O Refúgio, porque apesar de contar uma história importante, apesar de ter protagonistas e personagens secundários extremamente carismáticos e apesar da construção narrativa muito bem feita, o enredo não é crível. Apenas esperando algum de vocês ler esse livro para vir conversar comigo, pelo amor de Deus. Quem sabe assim eu possa entrar em um consenso comigo mesma. rs
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