Front

Front Edimilson de Almeida Pereira




Resenhas - Front


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Leila de Carvalho e Gonçalves 16/02/2022

?Dam, Dam, Damarifa Due?
?O sol nunca se cansa de nascer, mas o homem pode se cansar de estar sob o sol.? (Simone Schwarz-Bart)

Edmilson de Almeida Pereira, uma das principais vozes da poesia brasileira contemporânea, inovou na sua estreia como romancista. Entre novembro e dezembro de 2020, ele publicou três romances ? O Ausente, Um Corpo À Deriva e Front ? por três editoras diferentes, no caso, Relicário, Marcando Edições e Nós.

Coincidência ou não, chama a atenção como cada livro identifica-se com o respectivo selo e, a despeito desse aspecto, eles fazem parte de uma trilogia intitulada Náusea, que relata três experiências catárticas, sendo mais explícita, três experiências em que a autorreflexão antecede uma tomada de atitude por parte do protagonista de cada história.

Front, o último titulo lançado, foi o vencedor do Premio São Paulo de Literatura 2021 e reúne dezesseis capítulos escritos sem um encadeamento lógico aparente, isto é, que não seguem o fluxo do raciocínio linear. O resultado é um texto que atende critérios complexos, ao mesclar ficção, ensaio e prosa poética, a bem da verdade, difícil de classificar.

Inserindo o papel da memória como inextricável para a compreensão do presente, o livro tem como narrador um protagonista que se recusa a ser nomeado, mas afirma que ?fúria poderia ser o seu nome de batismo?. Singularmente, ele assume ser um ?homem-árvore?, ?que olha o mundo para dimensões impensadas? a partir da periferia onde cresceu e ainda reside. Um local cuja origem remonta ?a um amontoado de móveis e equipamentos eletrônicos? semelhantes ao ?sítio de uma civilização perdida?.

É nesse espaço geográfico que se circunscreve a trama, enquanto a personagem aguarda durante aproximadamente três horas a vez de pagar as contas: ?A fila à porta da casa de jogos não anda. O sol arde, são dez horas da manhã e nenhum de nós tirou a sorte grande. Um táxi passa com toalhas presas às janelas. ?Outro táxi freia rasgando o meio-fio. Alguém desce, a temperatura sobe: o sol esparge ainda mais o que escondemos. Estamos úmidos, nus. Há quanto tempo não adianto um passo na fila??

Por outro lado, o tempo psicológico ? ligado às lembranças, reflexões e sentimentos ? possui um sentido subjetivo e perambula da infância ao presente, apresentando amigos do ?homem-arvore? e moradores do local, expondo seu gosto pela leitura e, sobretudo, registrando a corriqueira violência das forças um Estado arbitrário e violento contra as minorias. Minorias que possuem na linguagem seu agente transformador, ou melhor, de posse dos insatisfeitos, ela é a melhor maneira para acionar a alavanca da mudança ? e também da revolta ? para além do ?monturo?.

?A primeira regra do homem-árvore é desejar. A segunda é falar sobre a cerca de arame à volta do desejo. A terceira, viver ? apesar de ? o desejo. As regras só têm sentido se o pensamento se aproximar das coisas que se lançam. O homem-árvore fala quando balança. Quando se enraíza fala para dentro. Se o vento sopra suas costas, é para fora que ele fala. ?Toda condição é propícia para o homem-árvore falar. Não se entenda falar como ferramenta para recortar e montar. Há outra ordem quando o homem-árvore fala: é uma urdidura, um desmanche do debrum.? (Página 40)

Portanto, se ?front é a linha de frente?, não é por acaso que Front é uma obra de ?conFRONTo?, apoteótica como sina e/ou solução: ?No passado, tia Edite tirava uma carta ao acaso e comentava: ?Cada um aprenda por si o desespero. Não há nada sob o teto e a mão que aponta o futuro está podre?. Nunca soube a quem ela se referia. No entanto, a falta de algo em casa indicava que ela estava certa: alguém apodreceu nosso futuro. Aprender por si era descobrir a palavra que afronta. ?Dam, dam, damarifa?, Tia Edite exclamava quando alguém morria. Não importa se hoje a língua de casa não decifra essas palavras. A língua é sempre outra, se outra é a pessoa. O que sabemos? A língua veloz está solta no mercado e muda o centro da cidade ? ela demove a língua de quem manda na moeda, mas jamais entenderá quem gira ao som do logus ?dam, dam, damarifa due?, me façam sumir e eu reapareço ?dam, dam, damarifa due?, tirem meus sapatos e voarei em suas gargantas, ?dam, dam, damarifa due a quem a morte observa? a quem??. ? ? Você não entendeu? Eu diria que não é dos nossos. Mas há gente nossa que também não entende.?

?Dam, dam, damarifa due? é a senha para adentrar em Front, um fragmento de um poema, intitulado Tano em espanhol, extraído do livro Masks, de Edward Kamau Brathwaite, que trata da reconexão física e espiritual com a África. Em especial, se lido em voz alta, o trecho ? dam, dam, ?, due ? reproduz o som do tam tam, instrumento usado pelo povo Akan nos rituais de morte, um povo que está concentrado no sul de Gana e sua língua, twi, é a mais falada depois do inglês no país. Aliás, no original, esse poema foi quase inteiramente escrito em twi.

Concluída a leitura, sugiro emendar Front com a canção Caravanas, de Chico Buarque, e o romance O Canto de Solomon, de Toni Morrison, que aborda a lenda dos homens voadores, levada pelos africanos escravizados para os Estados Unidos. Surpreenda-se!
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