Leila de Carvalho e Gonçalves 03/05/2020
O Fio Invisível Do Novelo De Lã
Ana de Corona é a primeira romance que tem como cenário o Brasil convulsionado pela atual pandemia, entretanto jamais as palavras vírus e Covid19 são mencionados no texto e há um bom motivo para isso. De acordo com a autora, essa é a forma que escolheu para escapar do bombardeio diário dessas dois termos.
Na realidade, é ?corona? que ganha destaque na narrativa. Ela não só aparece no título, também remete a um interessante trocadilho que será explicado ao longo da leitura, como ganha novos contornos mediante o emprego de seu significado mais poético: Corona também é o halo de luz ao redor do sol.
Tendo como protagonista uma ambientalista chamada Ana cuja vida vai de mal a pior por conta do desgaste do casamento e de problemas profissionais, o livro explica de forma didática a expansão do vírus e suas consequências a partir da ideia do Fio do Novelo de Lã:, isto é, ?uma linha invisível que, ao ser puxada, conecta diretamente cada árvore amazônica a um executivo da Avenida Paulista?, como provou a fumaça das queimadas na floresta que deixou a cidade na escuridão durante o meio da tarde em 19 de agosto de 2019.
Por conseguinte, num mundo sistêmico basta um provável morcego infectado, comprado num mercado chinês e servido como iguaria, para dar início a uma pandemia com capacidade de por em risco nossa sobrevivência e transformar o planeta. Em poucos dias, as águas dos canais de Veneza voltaram a ficar cristalinas e após décadas, é possível avistar o Himalaia de algumas cidades ao norte da Índia.
Finalmente ?Ana de Corona? pode ser enquadrado como um experimento literário. Fugindo do óbvio, a narrativa retrata a pandemia durante a pandemia, tecendo um cuidadoso registro de fatos, possibilidades e expectativas. Concomitantemente, da inspiração ao lançamento do e-book foram somente 19 dias, tempo que inclui duas revisões e editoração. Algo surpreendente para o resultado apresentado, recomendo.
Nota:
?No filme Contágio, o roteirista Scott Z. Burns previu que uma pandemia viria de morcegos expostos ao mundo dos homens por causa de árvores desmatadas. Que a doença contagiosa iria se alastrar de forma rápida por todo o planeta, cientistas correriam atrás da vacina, civis fariam isolamento social, haveria fechamento de fronteiras, saque em supermercados, quebra de farmácias e uma epidemia paralela de fake News. A única coisa que ele não previu foi presidentes contra as normas sanitárias de segurança pública. A presença de um vilão não foi concebida pelo artista, por considerar óbvio que, diante de uma situação dessas, o único inimigo possível é o vírus contra o qual a humanidade luta. Falas perigosas que colocam a população em risco e tornam cientistas, especialistas e profissionais de saúde alvos de dúvida não passaram por sua cabeça, afinal, um diretor de estúdio acharia inverossímil um presidente desumano em uma situação dessas. Mas a realidade sempre supera a ficção.? (Posição 986)