Ruan Ricardo Bernardo Teodoro 06/11/2023
Pode um mito ser santificado?
"O Evangelium, não aboliu as lendas; ele as abençoou, especialmente o 'final feliz'."
J. R. R. Tolkien
Nessa obra, Bradley J. Birzer analisa como Tolkien uniu a imagética e a cultura pagã em sua narrativa com a doutrina cristã em que acreditava, produzindo um mito santificado, isto é, que fala sobre pagãos virtuosos, cujas virtudes como a coragem e a vontade bruta puderam encontrar significado pleno apenas quando redimidos pela doutrina da graça cristã. Nesse sentido, Birzer discorre como os personagens principais - Sam, Frodo, Gandalf e Aragorn - representam facetas do heroísmo pagão, os quais, por passarem por esse processo de santificação, prenunciam implicitamente a mensagem cristã, como, por exemplo, a associação de Frodo como sacerdote, de Gandalf como profeta e de Aragorn como rei, três características de Jesus Cristo.
Vale ainda destacar que Tolkien, um católico fervoroso, jamais poderia escrever um mito que fizesse crer nos antigos cultos pagãos, os quais ele desprezava enquanto cristão. Entretanto, ao compor o Senhor dos Anéis - uma obra fundamentalmente religiosa e católica, como o autor a descreve - ele se deparou com o seguinte obstáculo: caso houvessem referências explícitas a Cristo, sua obra poderia ser tomada como uma alegoria - o que não era sua intenção - ou, no pior dos casos, como uma imitação blasfema da mensagem cristã.
Por esses motivos, a solução encontrada por Tolkien foi absorver a religião no simbolismo, buscando criar um equilíbrio entre o mito pagão com a verdade cristã, santificando, assim, o mito pagão.
O povo de Rohan ilustra bem esse ponto: eles não adoram nenhum deus pagão, não possuem escravos e não praticam poligamia, em outras palavras, eles são tão virtuosos que mal podem ser chamados de pagãos. Mesmo sendo pagãos, são pagãos virtuosos.
Ainda, é possível observar esse processo de santificação do mito da Terra-Média ao sugerir que a intenção do autor era mostrar a harmonia entre as virtudes pagãs e a doutrina cristã da graça.
Nesse sentido, na batalha final em frente ao Portão Negro de Mordor, os capitães dos povos livres se colocam corajosamente como isca para desviar a atenção de Sauron de Frodo. Acontece, porém, que sua virtude pagã da coragem não teria sido bem sucedida caso eles não tivessem uma confiança na graça - isto é, que Sam e Frodo iriam, de algum modo, destruir o Anel, o que só foi possível devido à misericórdia que Frodo ofereceu a Gollum mais cedo na estória.
Assim, os elementos pagãos da estória não estão alheios às concepções cristãs como a graça e a misericórdia, sendo, portanto, razoável dizer que o Senhor dos Anéis é um mito santificado, pois enquanto preserva suas vestes mitológicas também prenuncia implicitamente o Evangelho. Conclui-se, desse modo, que as virtudes pagãs não apenas se harmonizam com a graça cristã, mas que elas se aperfeiçoam quando a encontram e que um mito santificado apresenta vislumbres do Mito Verdadeiro e do Herói dos heróis: Jesus Cristo.
Por fim, nas palavras de Chesterton, a mitologia buscava a verdade por meio da beleza e da imaginação. De modo semelhante, Tolkien em sua mitologia buscou, através da imaginação, mostrar a beleza da Verdade.