Neylane Naually 17/04/2024"A carta guardava uma vida inteira""Uma carta inteira. Uma palavra seguindo a outra, quantas palavras? Mandar carta para uma pessoa que não sabia ler, só sendo. A ponta do lápis pairou acima da linha. O próximo nome tinha escrito a carta cinquenta e dois anos antes. Ao lado do caderno, o envelope encruado, sempre fechado. Raimundo não deixou ninguém ler e envelheceu com o desejo de saber o que ela diz crescendo dentro dele. Feto idoso, rebento tardio. A carta guardava uma vida inteira."
Assim começa A palavra que resta, um livro que mostra o poder das letras, palavras, frases, livros e uma carta. A história de Raimundo e Cícero é trágica, vivem um amor impensável para os outros, mas essencial para eles. Ao serem pegos juntos são obrigados a se separar dolorosamente, sem despedidas e sem saber se um dia iriam se reencontrar. A carta que Cícero deixa pra Raimundo é o único elo que remanesceu entre os dois. Mas Raimundo não sabe ler, e guarda a carta por anos sem saber o que contém nela, sem saber se ela poderia ter mudado o rumo dos dois na vida, se era uma despedida ou uma promessa de reencontro, se era o maior "e se" deles.
Stênio Gardel mescla esse romance lindo com a importância da alfabetização. Raimundo sempre demonstrou desejo grande de aprender a ler e escrever, mas suas vontades nunca eram atendidas. Teve que trabalhar no campo desde muito novo, se tornou refém de um mundo sem letras e palavras. Mais frente na vida, o personagem fala que é "ruim demais não saber [ler], é quase ser cego podendo enxergar". E esse processo de aprendizagem do Raimundo é muito bonito. Ele decide ir pra escola já mais velho, faz conquistas lindas, esbarra com pessoas que enriquecem sua vida, vive sua aceitação. Destaque pra travesti Suzzanný, uma personagem que muda a percepção de mundo de Raimundo.
"Esticador de horizontes, a professora Ana explicou que na poesia uma palavra diz muito mais do que diz, é a palavra que se estica então, isso sim, onde a palavra sozinha não vai, com a poesia vai, voa, que nem os passarinhos, passarinho que escuta de longe o silêncio que é tão alto, silêncio alto, abrir amanhecer, encolher rio, esticador de horizontes"
A história tem trechos marcantes, dolorosos. Tem uma passagem que me fez prender a respiração no momento da leitura, é uma conversa torturante entre Raimundo e sua mãe, em poucas palavras Stênio Gardel derramou um rio de sofrimento.
Amei esse livro, li suas 160 páginas em um dia e me encantei profundamente com a escrita do autor (tanto que comentei com ele sobre isso aqui mesmo no Instagram e ele, muito solícito, me respondeu carinhosamente). O livro ganhou o National Book Award na categoria literatura traduzida pela tradução de Bruna Dantas Lobato na edição da New Vessel Press (USA).
"meu jeito, meu desejo não me doía mais, e eu pude olhar a vida desse outro lugar, mais alto, mais claro, claro que enfrentei gente, onde que se vive sem enfrentar gente? talvez aí pelo céu, depois que vira espírito, enquanto temos corpo, o corpo molda tanto nesse mundo que não justifica"