neo 09/02/2015Acho que vocês já sabem que eu estava no mínimo curiosa sobre esse livro quando o coloquei na minha lista de leitura alguns meses atrás. Uma coisa que geralmente me incomoda muito nas obras de fantasia grimdark que leio é o fato do personagem principal nunca sofrer realmente com a violência usada como acessório para dar algum pseudo-realismo aos mundos onde essas histórias se passam. Mulheres são estupradas, claro, e há racismo e homofobia, mas o protagonista nunca é alvo de nada disso (sendo o homem branco e hétero de sempre) e mesmo assim é meio esperado do leitor que ele se senta mal pelo protagonista ou pelo menos que concorde quando ele, em um ataque de cinismo, fala sobre como o mundo é uma merda mesmo sem ter sentido muito do que faz o mundo ser uma merda de verdade. Enfim, grimdark sempre me pareceu o gênero onde homens brancos e héteros podem choramingar sobre como a vida é ruim usando o sofrimento dos outros para justificar essa "vida ruim", e isso meio que não me interessa porque zZzZzzzZZzz
Em The Steel Remains, porém, o protagonista, Ringil, é gay. E, o que eu não esperava, uma das personagens com POV, a Archeth, uma mestiça de humano e Kiriath (uma raça quase imortal de "engenheiros" que sabiam unir magia e tecnologia, mas que deixaram o continente há alguns anos), é lésbica. E o mundo onde a história se passa é terrivelmente homofóbico, e os dois sofrem, em escalas diferentes, por causa disso.
Ringil, Archeth e Egar, o outro personagem com POV, são heróis da guerra contra as criaturas reptilianas que invadiram o continente através do mar anos atrás, e isso faz deles personalidades famosas por onde quer que passem. Infelizmente, todo mundo meio que sabe que Ringil é gay e ele escapou da morte por empalação (sim, ew) somente por ser de uma família poderosa. Seu namorado/amente/sei lá, porém, não teve a mesma sorte, e o leitor acaba presenciando sua morte através de flashbacks (não é algo bonito, vai por mim).
A história começa quando a mãe de Ringil, Ishil, vai até a vila onde ele mora para pedir que ele resgate uma prima, Sherin, que foi vendida como escrava graças a uma dívida não paga de seu marido. Em Yhelteth, Archeth deve investigar um ataque misterioso que destruiu uma das cidades-porto do Império e que pode ter sido feito por uma raça lendária e quase esquecida tão forte que até seu próprio povo, os Kiriath, a temiam. E nas estepes, Egar, líder de um clã nômade, acaba se envolvendo em uma disputa envolvendo a misteriosa religião Majak.
The Steel Remains segue bem a linha grimdark. É violento, cheio de sexo, estupro, palavrões e morte (se eu ganhasse uma moeda para da cada vez que "fuck" ou "fucking" aparece no texto acabaria rica), mas também é cheio de mistérios, principalmente envolvendo os dwenda (a raça antiga e poderosa que pode estar de volta), os Kiriath (inimigos dos dwenda e aliados dos humanos na guerra contra a raça reptiliana, não mais habitam o continente) e os deuses da religião Majak. Deuses esses, aliás, que são do tipo cruel e egoísta, e que não hesitam em usar os humanos do jeito que bem entenderem.
Eu gostei bastante da escrita do Morgan, e ele foi bem habilidoso na hora de espalhar as informações necessárias durante a história de modo que o leitor só soubesse o suficiente para se manter interessado. Há coisas, por exemplo, que a gente acha que entendeu direito no início, mas lá no final começamos a perceber que na verdade não era bem assim. Os personagens, talvez graça à escrita, são bem diferentes entre si e até mesmo os secundários são bem definidos (a mãe do Ringil, Ishil, por exemplo, é ótima).
E falando em personagens, achei que fosse odiar o Ringil (já que personagens cínicos geralmente me dão sono e/ou me fazem revirar os olhos), mas acabei gostando bastante dele. Ringil é um veterano de guerra experiente que sabe muito bem que praticamente todo mundo com quem falar vai desprezá-lo por causa de sua sexualidade, mas na maior parte do tempo ele não está nem aí pra isso e acaba calando a boca de todo mundo de qualquer jeito mesmo. Já estou acostumada a ficar irritada junto com um personagem e ter que ler ele/a ficando quieto para não arranjar confusão ou por qualquer outro motivo, mas a atitude de "não estou nem aí" faz Ringil fazer tudo, menos ficar quieto, e os resultados disso eram sempre no mínimo divertidos. Gostei da Archeth e do Egar também, mas (após o Ringil) a Archeth é minha favorita. A história dela como a última dos Kiriath (sendo mestiça e etc) é bem interessante, e as cenas entre ela e o imperador de Yhelteth, Jhiral, se tornaram umas das minhas preferidas do livro.
Outra coisa que me agradou foi o modo com que o autor tratou a questão da perspectiva de cada raça ou povo, ou de como tendemos a transformar o inimigo em animais para tentar justificar nossas fraquezas ou a força deles, quando na verdade somos bem parecidos. Não posso falar muito sobre isso sem dar spoiler, mas é algo que raramente vejo em livros de fantasia apesar de esse ser um tema (que deveria ser) bem presente no gênero.
Enfim, The Steel Remains só não levou cinco estrelas porque em alguns momentos a história se arrasta (principalmente no início). O final levanta umas hipóteses bem interessantes, então não vejo a hora de ler o segundo volume, The Cold Commands. 4 estrelas.
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