Tuca 03/09/2021“O que o Sr. Wilkie Collins fez por meio de um delicado cuidado e de uma laboriosa modéstia, aqueles que o sucederão tentarão alcançar sem o mesmo critério.” – Margaret Oliphant sobre o trabalho de Wilkie Collins (citação retirada do Australasian Journal of victorian studies- tradução minha).
Wilkie Collins foi um autor inglês que viveu no século XIX, conhecido por escrever o que eram chamados de romances “sensacionalistas” ou “de sensação”, e por ser pioneiro nas histórias de detetive. Isso porque os próprios romances sensacionalistas são considerados os precursores da ficção policial. Entretanto, ainda hoje se discute em qual gênero alguns de seus romances seriam inseridos, o que é o caso de A dama e a Lei, que possui características tais que indicavam a transição entre os dois gêneros, e vários críticos também identificam nele traços do gótico.
Valéria Woodville é a heroína e a narradora dessa história, além de ser a dama em questão que vai usar da sua perspicácia para investigar e analisar um caso jurídico sem conclusão. Ao se casar com aquele considerado o amor de sua vida, você cogitaria a possibilidade de ele ser um assassino? Apaixonada, a jovem Valéria foi avisada pela família para não se casar com Eustace, mas seu coração não era capaz de ouvir mais nada, além das próprias batidas. Depois de casada, ela descobre que seu marido fora acusado de ter matado a primeira esposa, mas que sem provas convincentes o júri dera o veredicto de “não provado”, ou seja, não o inocentaram, nem o consideraram culpado (por sinal, a Escócia até hoje ainda mantém a possibilidade de três veredictos, ao contrário da maioria dos países que só tem dois). “O veredicto escocês”, como ficou conhecida a decisão de “não provado”, criou um trauma para Eustace, que o fez afastar a esposa, assim que ele soube que ela tomara conhecimento do caso. Em busca de fazer seu marido retornar para ela, Valéria estava decidida a descobrir quem realmente matou Sarah Macallan, e consequentemente, provar publicamente a inocência do esposo.
Esse livro, a meu ver, pode ser pensado de duas formas: um viés sexista de uma esposa teimosa conduzida por um amor cego, e um viés de coragem de uma mulher obstinada em busca de sua felicidade. E essas duas visões não são mutuamente excludentes, é possível interpretar a história dos dois jeitos ou talvez de nenhum deles, se você encontrar outra maneira de olhar para ela. “A Dama e a Lei” pode ser um título que coloca numa balança o que Collins considerava como sendo a emoção (o feminino) e a razão (lei ou o direito, algo que, no período, era conduzido pelos homens), pois fica claro que o que guia e dá força a Valéria em seu objetivo são seus sentimentos: amor, felicidade, curiosidade, fé, esperança. Mas da mesma forma, as ações de Eustace também são puramente emocionais, assim como a dos coadjuvantes Major Fitz-David (o alívio cômico do enredo) e de Miserrimus Dexter. Valéria, pelo menos, é dotada de uma excelente capacidade de raciocínio lógico, e encontra uma forma racional de lidar com seu drama emocional. E sua sogra, além disso, é uma das personagens com mais lucidez na trama. De tal maneira, por mais que o defeito do livro seja algumas horríveis falas machistas, são as personagens femininas que brilham e que são as mais perceptivas.
Mesmo que Collins insira falas sexistas que hoje incomodam o leitor moderno, mas que possivelmente no passado seriam citações corriqueiras, ele cria em Valéria uma personagem feminina que não nega seu lado emocional (emoção essa vista como biologicamente feminina, mas que na história é colocada também em personagens masculinos bastante emocionados e que não conseguem ter a racionalidade dela), e é protagonista de sua própria história de uma maneira transgressora para a sociedade vitoriana. Ela entra em um mundo masculino e tem que lidar com homens para alcançar seus objetivos, quando poderia ter ficado chorando em casa. E Collins conclui a narrativa de uma forma coerente com a personagem, que justifica a citação de Françoise Dupeyron-Lafay em The paradox of gothic detection in The Law and the Lady (1875) by Wilkie Collins de que “O papel feminino em A dama e a Lei é tanto natural (sob os padrões biológicos), quanto não natural (pelos padrões sociais vitorianos)” (tradução minha).
Para mim, Valéria é uma personagem diferenciada, que faz o que é necessário para conseguir o que ela quer. O que pode causar perturbação ao leitor, acredito eu, é que o que ela deseja não é necessariamente o que o leitor do século XXI acha que ela merece. Como diria Blaise Pascal “O coração tem razões que a própria razão desconhece” e é na razão de seu coração que Valéria carrega esse romance nas costas.
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