Stella F.. 12/07/2023
Memória e Imaginação e pano de fundo pandemia
O último gozo do mundo
Bernardo Carvalho - 2021 / 144 páginas - Companhia das Letras
Tive o prazer de assistir à uma mesa (pelo telão) na FLIP 2022 em Paraty (RJ). Não conhecia o autor, e sua fala foi bastante interessante, tanto que logo em seguida comprei o exemplar desse livro e consegui o autógrafo.
O livro é ambientado durante a pandemia de Coronavírus, exatamente durante a quarentena, e sob esse pano de fundo vamos conhecer os personagens que não tem nome, mas apenas denominações de mulher, marido, filho, escritora, enfermeiro e algumas descrições físicas que os particulariza, como por exemplo “o homem com barba”.
O livro vai tratar de memória, imaginação, escolhas, pandemia, entre outros assuntos.
Conhecemos a mulher que acaba de se separar do marido. Ela é uma socióloga e uma escritora que escreve sob pseudônimo.
Um dia antes da decretação da quarentena, a mulher resolve ir à palestra de uma escritora que critica seus livros, mas não sabe quem a mulher é. Lá conhece um rapaz e eles se relacionam. Não se encontram mais, e ela descobre que está grávida. Não tem oportunidade de contar ao pai da criança. Em uma outra situação, quando resolve ir a uma festa, todos estavam excitados com um pouco de flexibilidade e agindo como se tudo fosse acabar no dia seguinte, ela encontra o pai da criança, mas por uma determinada situação, em que o rapaz afirmou a ela que “eles (continuava sem nomeá-los) decidiram arrancar o último gozo do mundo. Um gozo de destruição que estavam determinados a desfrutar sozinhos” (pg. 22), ela novamente não consegue contar.
Depois disso, a mulher resolveu sair viajando para descobrir o paradeiro do pai da criança, se estava morto, e no trajeto começa a contar tudo para o filho, como se ele tivesse a capacidade de entendimento e apreensão de suas palavras. Ela queria garantir que sua história não se perdesse, com medo de não ter mais lembranças ou memórias, assim como o seu pai que esqueceu tudo. “É claro que nem tudo era altruísmo no amor dessa narrativa simbiótica, e não só por ele não poder retrucar: quando ela já não se lembrasse, ele poderia lembrar por ela.” (pg. 45)
No meio do caminho ela vê um grande grupo parado e curiosa estaciona para observar. Eram pessoas gritando palavras de ódio, como se fosse uma catarse do que estava engasgado, e era um grito coletivo e individual ao mesmo tempo. Usavam a palavra “Canalha!” para um abismo, que ecoava. “Podiam gritar “🤬 #$%!& !”, “escroto” ou qualquer outra injúria que lhes inspirasse um certo realismo, sua condição de adultos, mas era como se o que havia de infantil, inofensivo e patético naquela ofensa ao mesmo tempo singular e coletiva, dirigida ao vazio e a si mesmos, lhes restituísse a inocência e a incompreensão características da pureza, e assim também os redimisse da culpa de terem compreendido tudo, sim, desde o início, e de serem os principais agentes responsáveis pelo estado surreal em que se encontravam e que aquele desabafo nomeava tão bem.” (pg. 55) Esse grito de ódio irá se refletir mais tarde nas lembranças da criança.
Mas a viagem da mulher tem um fim, encontrar um tipo de guru, ou oráculo, no interior do Brasil. Há uma história sobre esse “Sobrevivente”. Ele teria sobrevivido à Covid-19, mas perdeu a memória, e como consequência consegue prever o futuro ou imaginar o futuro. A mulher chega ao destino e lá encontra muitas pessoas como ela, tentando descobrir uma resposta para os seus problemas e anseios, e na sala de espera encontra figuras como ela, todas com algum tipo de questionamento. A conversa gira em torno das histórias de cada um, os motivos para estarem ali, querem dar sentido a algo que não conseguem resolver, esperam que o oráculo dê uma luz ou aponte uma direção. No caso da mulher, ela precisa saber se o pai do filho está vivo ou não, sem isso não consegue seguir em frente.
Na espera ela fica com mais duas pessoas: um enfermeiro que tem uma caixa que não sabe se abre ou não. Foi deixada por um paciente que pediu que ele a destruísse caso falecesse. Há toda uma história sobre esse paciente e seu amante, que o enfermeiro acaba conhecendo. Aqui, intercalado com os capítulos vai surgir uma conversa entre uma orientanda e seu orientador. São pessoas negras falando de racismo estrutural com visões completamente diversas. Surge uma crítica a escolha de um respirador e toda um protocolo que deveria ser seguido, mas nem sempre é: quem tem direito? Quem chegou primeiro? Quem tem problemas mais graves de saúde? Muito interessante, mas que parece meio solto no meio do livro, mas ao escutarmos entrevistas do autor, entendemos melhor a sua intenção.
Outra pessoa é denominada “Bigodudo” e vai contar os segredos de sua mãe, a existência de um irmão gêmeo que não tinha conhecimento e a senilidade da mãe e sua difícil convivência em tempos de Covid, já que era um filho ausente. Aqui vai ser ressaltado um agravamento da disfunção das pessoas já debilitadas com a pandemia. Essas pessoas perderam o pouco de nexo que tinham, deixaram de prestar atenção a coisas que antes prestavam, como se não fizessem mais sentido.
Então, enfim eles são chamados a ir até o Sobrevivente. Na vez da mulher, ela leva o filho, que logo que entra fica irritado e chora muito. Um homem que sai de uma sala fala algo no ouvido do menino. que se acalma, mas quando ele sente a presença do Sobrevivente, começa a ter um tipo de convulsão e fala pela primeira vez: Canalha! Não pai, mãe, mas essa palavra que foi escutada por ele ainda no colo da mãe na estrada quando desconhecidos gritam em uma montanha. Com essa fala, como se lembrasse de tudo que a mãe contou para ele ainda quando não entendia nada, O Sobrevivente lembra, e a partir daí não pode mais prever o futuro. E todos voltam para casa sem uma resposta, mas enquanto estavam ali esperando, foram achando brechas e entendendo o que queriam nesse lugar. A espera funcionava já como uma resposta. Ao final, o menino já grande, adulto, resolve escrever um livro, após a partida de sua mãe. Não fica claro se ela morreu ou apenas foi embora. "Foi a mãe que lhe contou a viagem antes da primeira palavra. Foi ela que lhe contou a cena da primeira palavra - e se agora parece mais estranha que a realidade, é porque quem não lembra imagina." (pg. 140)
Um livro difícil, não pelo texto, mas pela interpretação. Muito bem escrito, mas muitas vezes, para mim, hermético. Às vezes não sabia se estava entendendo algo.
Memória e imaginação, delírio, narrativas, escolhas, senilidade, pandemia, privilégios, discursos inflamados, perdas, ganhos, crença, futuro, sensações de morte e de falta de futuro, euforia, racismo estrutural e política. Assuntos pertinentes, ainda mais tendo como pano de fundo a Covid-19. Tivemos todos os sentimentos e sensações possíveis, e cada um respondeu a seu modo. Muitos ficaram doentes, e outros psicologicamente doentes.
Indico fortemente dois vídeos do autor com entrevistas: https://youtu.be/ObhyBsR4tU8 da Livraria Megafauna e https://youtu.be/oN94IyBWlYY da Flip 2022.