Leila de Carvalho e Gonçalves 08/07/2021
Bieguni
De autoria da polonesa, Olga Tokarczuk, ?Flights? foi o vencedor do Man Booker International de 2018. Quatro anos antes, o livro já fora lançado no país, recebera uma pequena edição a cargo da Editora Tinta Negra, e intitulado Os Vagantes, passara despercebido pela crítica e público, nem mesmo a premiação conseguiu causar maior alvoroço.
Entretanto, após a escritora vencer o Prêmio Nobel de Literatura de 2019, esta falta de interesse estava com os dias contados. Com os direitos autorais adquiridos pela Editora Todavia, a obra de Tokarczuk passou a ser lançada no país com boa repercussão e nada mais natural que seu livro mais prestigiado também recebesse um tratamento à altura. Para tanto, com outro título e recente tradução direta do polonês, ?Correntes? chega às livrarias para virar o jogo.
Mescla de romance e ensaio, trata-se de um coleção de relatos, alguns fictícios e outros baseados em fatos reais, reunidos por uma única narradora jamais nomeada. Ela assume ser uma vagante ou errante, alguém que não consegue fixar raizes num lugar por muito tempo, no seu caso, movida por um persistente e intenso interesse de conhecer tudo que é estragado, imperfeito, aleijado ou quebrado.
?? Eu me sinto atraída por aquilo que poderia ser considerado quebrado, imperfeito, deficiente, roto. Interesso-me pelas formas indistintas, pelos erros na obra de criação, por becos sem saída. Por aquilo que devia ter se desenvolvido, mas por algum motivo permaneceu imaturo; ou pelo contrário ? o que excedeu o planejamento inicial. Tudo o que não entra na norma, o que é pequeno ou grande demais, exuberante ou incompleto, monstruoso ou repugnante. Formas que não mantêm simetria, que se multiplicam, crescem para os lados, brotam, ou pelo contrário, reduzem a multiplicidade à unidade. Não me interessam acontecimentos repetitivos, sobre os quais a estatística se debruça com tanta atenção, celebrados por todos com um sorriso contente e familiar no rosto. Minha sensibilidade é teratológica, movida pelo gosto do monstruoso. Tenho uma convicção incessante e perturbadora de que dessa forma o ser verdadeiro sai para a superfície e revela a sua natureza. Uma revelação repentina e casual. Um vergonhoso ?ai?, a ponta da roupa íntima aparecendo debaixo de uma saia cuidadosamente plissada. Um esqueleto metálico e asqueroso que aparece de repente debaixo do estofado de veludo; a erupção da mola de dentro de uma poltrona acolchoada que desmascara descaradamente a ilusão de qualquer maciez.? (Páginas 18 e 19)
No total, são 353 páginas divididas em 116 partes de menor ou maior extensão. Uma prosa labiríntica composta por relatos que ora apresentam a dissecação do cadáver de uma jovem em Amsterdã durante o século XVII, ora a recente visita da protagonista a uma exposição de espécimes biológicos ?plastinados?. Para quem como eu desconhecia o termo, a plastinação é uma técnica moderna de mumificação, ideal para estudo e pesquisa da anatomia, que consiste em trocar a água e a gordura dos tecidos por polímeros, privando as bactérias do que elas precisam para sobreviver.
Aliás, como previra depois da leitura da sinopse, os assuntos abordados são fascinantes e singulares. Inúmeras vezes, interrompi a leitura para averiguar se estava diante da imaginação de Tokarczuk, de um fato, ou da ficção reescrevendo esse fato. Um exemplo é a macabra viagem de Ludwika J?drzejewicz que atendendo ao último desejo de Frédéric Chopin, seu irmão, transportou clandestinamente ? de Paris à Varsóvia ? o coração do compositor num pote com conhaque. Porém, há muito mais, como a biografia imaginada de Philip Verheyen, um cirurgião flamengo, que teria identificado o tendão de Aquiles ou as preocupantes cartas remetidas por Josefina Soliman para Francisco I, nas quais solicitava o corpo do pai, um diplomata negro, que fora postumamente empalhado e estava em exposição no palácio.
Resumidamente, o livro aborda a impermanência de todas as coisas, mas também a desmobilização voluntária e mobilidade, uma realidade hoje em dia e uma aventura no passado. Também existe uma palavra-chave para melhorar este entendimento: ?Bieguni?, aliás, o título do livro em polonês. Este é o nome de uma antiga seita russa que rejeitou a vida estabelecida por uma existência de movimentação constante na mesma tradição do yogis viajantes, dervixes errantes ou monges budistas itinerantes que sobrevivem da bondade de estranhos.
Estes vagantes fazem parte de muitas histórias. Numa delas, Annushka, uma dona de casa em crise, encontra uma velha "louca" que mostra ser possível fugir de uma vida de sofrimento. Vestida com várias peças de roupa e com a cabeça envolta num trapo, ela é uma bieguni cujo monólogo oferece uma das vozes mais potentes do romance: ?Tudo o que possui o seu lugar fixo neste mundo, todos os países, todas as igrejas, todos os governos humanos, tudo o que manteve a sua forma neste inferno está a serviço do anticristo. Tudo o que está determinado, que se estende daqui até ali, o que está contido em rubricas, inscrito em registros, numerado, evidenciado, juramentado; tudo o que está recolhido, exposto, rotulado. Tudo o que nos prende: casas, poltronas, camas, famílias, terra, o ato de plantar e zelar por aquilo que foi plantado. Planejar, esperar pelos resultados, traçar cronogramas e manter a ordem. Por isso crie os seus filhos, já que você os trouxe imprudentemente a este mundo, e siga o caminho. Enterre os seus pais, já que eles imprudentemente fizeram com que você existisse, e vá. Vá para longe, fora do alcance da sua respiração, fora dos seus cabos e das suas redes, antenas e ondas, para não ser detectado pelos seus instrumentos sensíveis. Quem se detiver, ficará petrificado, quem parar, acabará preso como um inseto, o coração atravessado por uma agulha de madeira, as mãos e os pés perfurados e presos na soleira e no teto. Foi exatamente assim que ele morreu, Yefim, aquele que se rebelou. Ele foi capturado e seu corpo foi pregado na cruz, imobilizado como um inseto, exposto a olhos humanos e desumanos, sobretudo os desumanos, os que mais se deliciam com esses espetáculos; não é de estranhar que eles o repitam e celebrem todos os anos, erguendo suas preces a um corpo morto. O ódio dos nômades corre no sangue dos tiranos de toda espécie, servos do inferno. Por isso perseguem ciganos e judeus, por isso mandam assentar todas as pessoas livres, marcam com um endereço que para nós é uma sentença.? (Páginas 217 e 218)
Enfim, não importa de onde você vem, nem para onde vai, o que realmente interessa é onde você está.
Nota: Meu comentário foi extraído do e-book. Apesar da pequena diferença de preço com relação ao livro físico, essa foi minha preferência, pois já tenho um exemplar de Os Vagantes.