Flávia Menezes 14/06/2023
??ABANDONADO NO DIVÃ: RELATOS DE PSICOTERAPIA.
?Criaturas de um dia?, do psiquiatra e escritor Irvin D. Yalom, foi publicado em 28 de janeiro de 2015 e já é o 15º livro publicado pelo autor. Entre ficção, não-ficção e livros de memórias, em muitas das suas obras somos convidados a entrar no recôndito onde ocorrem as suas sessões de psicoterapia, e mergulhar nesse universo de intimidade e confiança onde almas se desnudam e corações rompem seus cadeados.
Já fazia alguns anos que eu não lia nada do Yalom, mas olhar essa nova roupagem das capas que a HarperCollins Brasil deu aos seus livros, me instigou a deixar um pouco de lado a minha lista de leituras, para mergulhar um pouco mais nos seus ensinamentos.
Por mais que uma escolha possa parecer algo aleatório (como o simples encantamento por uma capa bonita), o fato é que nós leitores sabemos bem que não escolhemos um livro, mas é ele quem nos escolhe. E muito embora eu tenha visto algumas críticas negativas sobre essa obra específica, dizendo até que é o pior livro já publicado pelo Yalom, eu confesso que para mim, como sempre, foi uma experiência bastante enriquecedora.
Só gostaria de fazer um parêntese antes, sobre o que acabo de dizer, porque muito embora cada um tenha sua predileção por um gênero de livro, ou sobre uma forma de narrativa, eu me incomodo com a questão de um livro de não-ficção ser criticado sem que seja exposto um motivo para isso.
Autobiografias, biografias e livros de memórias contam a história de alguém. E independente de nos identificarmos ou não (porque não é sobre ?não gostar?, porque ninguém vive uma vida para que o outro goste dela ou não), o respeito deve sempre estar à frente. Porque entre falhas e pecados, cada um vive a vida que consegue viver. Que dá conta. E isso vale para todos nós, já que ninguém veio a esse mundo como um alecrim dourado todo perfeitinho.
Agora, é claro que esse tipo de leitura, especialmente as autobiografias, são bastante tendenciosas, e é óbvio que seu autor irá se debruçar muito mais sobre as suas qualidades, do que em suas falhas e defeitos. E eu acho válido uma crítica em momentos assim, porque pode até mesmo ser instrutivo.
Por exemplo, a autobiografia da atriz da Nickelodeon, Jennette McCurdy, ?Estou feliz que a minha mãe morreu?, acendeu em mim alguns alertas, especialmente quando ela fala da psicoterapia como uma investigação sem sentido e centrada unicamente no passado do paciente (como se fosse um simples clichê falar dos pais do paciente). Como se trata de uma figura pública, um livro desses tem uma repercussão enorme, e sua fala distorcida pode influenciar o pensamento de muitos. Até mesmo na questão do Transtorno de Personalidade Narcisista, da forma como ela (Jennette) falou, existem vários pontos que foram bastante distorcidos. E isso não ajuda, mas atrapalha bastante o trabalho de profissionais qualificados que lutam para ajudar os filhos que, assim como no caso da Jennette, sofrem com pais com esse tipo de transtorno.
Sendo assim, mesmo uma história sendo verídica, seu relato também pode conter distorções, porque a narrativa é baseada na percepção individual e no conhecimento daquele que escreve. E isso não quer dizer que venha de alguém que estudou com profundidade, ou pelo menos intercalou estudos da área com a sua experiência pessoal. E um relato que é unicamente baseado no que ?se acha que é?, ou no que ?se pensa que é?, não é nada fidedigno.
Mas esse não é o caso desta obra, que traz sessões reais de psicoterapia de um psiquiatra experiente e já na casa dos seus mais de 80 anos. E o Irvin Yalom é para mim um mestre nesse quesito. Com sua base existencialista, de um paciente de ninguém menos do que o famoso psicólogo Rollo May, seus livros são escritos tanto para instruir um psicólogo recém-formado, como em desmistificar para o leigo do que se trata um processo de psicoterapia.
Neste livro, foi interessante acompanhar algo que acontece muito nos consultórios de psicologia: que é o abandono do paciente ao processo psicoterapêutico. E as razões pelas quais alguém não retorna (nunca mais!) para a próxima sessão pode ter motivos variados. E é algo que ele discute aqui.
Claro que nem todos os casos trazidos neste livro são de abandono de terapia, mas alguns se trata de um pedido particular feito pelo próprio paciente (por motivos que o Yalom também explica) de ter com ele apenas uma única sessão. E isso é o que foi mais rico aqui nesta leitura: perceber que mesmo com algo não duradouro à sua frente, o trabalho do Yalom foi feito com a mesma seriedade, profundidade e entrega de um processo psicoterapêutico mais completo.
?Durante minha gestão como chefe da enfermaria do Hospital de Stanford, eu dependia do diagnóstico para tomar decisões sobre o tratamento farmacológico mais eficaz. Mas em meu consultório de psicoterapia, nos últimos quarenta anos, com pacientes com transtornos menos graves, passei a julgar o processo de diagnóstico irrelevante e a acreditar que as condições por que nós precisamos passar para atender às exigências de diagnósticos precisos dos planos de saúde são prejudiciais ao terapeuta e ao paciente. No procedimento de diagnóstico, não somos fiéis à realidade. As categorias de diagnóstico são inventadas e arbitrárias, são o produto do voto de comissões e passam por profundas revisões a cada década.?
São muitas as passagens marcantes, repletas de sabedoria desse mestre chamado Yalom, tanto quanto de ricos insights de seus pacientes, mas essa passagem acima tem um grande peso, porque ela revela algo de extrema importância para todos aqueles que atuam na área: um paciente não é o seu diagnóstico! Ele nunca será um CID, ou uma patologia. Ele é um ser humano que carrega dentro de si uma história de vida que define muito de quem ele é, e de como ele é capaz de se colocar no mundo.
E é aqui que até me lembrei do neurologista Oliver Sacks, em seu livro ?O homem que confundiu sua mulher com um chapéu?, onde ele fala da importância em se ir além do diagnóstico, e não acreditar que se sabe tudo a respeito do paciente. Todo o processo terapêutico para ser eficaz, necessita do estabelecimento dessa relação entre profissional-paciente, e da ?escuta ativa? desse profissional (seja ele médico ou psicólogo) para compreender esse paciente em sua singularidade, e com ele aprender o caminho desse processo de cura, ou de melhorias na sua saúde mental.
O mais incrível nesse tipo de livro, é que muitas vezes podemos nos identificar com algum caso de um paciente, afinal somos todos seres humanos, e não somos os únicos a sofrer determinados tipos de problemas. E isso é rico, porque quando encontramos em livros assim questões que se assemelham a nossa realidade, apesar de não estarmos sentados no divã (ou sofá) do Dr. Yalom, existem ganhos que podemos tirar para a nossa própria vida apenas lendo.
É claro que isso não substitui de forma alguma um processo psicoterapêutico, pois não há como ter uma descrição fiel ao nosso caso e nem a quem somos, mas pode servir como uma boa dica de uma necessidade de se iniciar um processo de psicoterapia, tanto quanto, como um insight para uma situação que não enxergávamos, e que foi clareada graças ao caso de um paciente do Dr. Yalom. Confesso que eu mesma me surpreendi ao encontrar um caso com o qual me identifiquei, e isso foi algo riquíssimo para mim.
Talvez você nunca tenha feito psicoterapia na sua vida. Ou pode até ter algum tipo de preconceito quanto ao trabalho dos psicólogos por não saber como ele se dá. Ou até ter muita curiosidade em saber como é uma sessão de psicoterapia. Para todos esses casos, eu te incentivo a ler esse livro, pois essas serão respostas que você certamente terá por aqui. E eu espero que assim como eu, esses casos possam te emocionar e ensinar, pois são relatos de muita coragem de pessoas normais como você e eu, que um dia se decidiram por entrar por uma porta de um consultório de um psicoterapeuta, e tirar todos os filtros que escondem sua verdadeira personalidade, para se mostrar como são, e se permitir ser vistos por um outro alguém ali disponível a os ajudar.
?A coisa mais importante que eu, ou qualquer outro terapeuta, posso fazer é oferecer um relacionamento terapêutico autêntico, do qual os pacientes extraiam aquilo de que precisam. Iludimos a nós mesmos se pensamos que uma ação específica ? uma interpretação, sugestão, nova rotulagem ou tranquilidade ? é o fator terapêutico. (...) Como nunca saberemos com precisão como ajudamos, nós, terapeutas, temos de aprender a conviver com o mistério enquanto acompanhamos pacientes em suas jornadas de autodescobertas. Escrevo para aqueles entre vocês com um forte interesse na psique humana e no crescimento pessoal, para os muitos leitores que se identificarão com as crises existenciais perenes retratadas nestes relatos e para indivíduos que pensam em fazer terapia ou já estão numa. Espero que estas histórias de recuperação encorajem aqueles que combatem seus próprios demônios.?