Iotave 07/04/2023
O tal do Holmes francês
Quando foram publicadas pela primeira vez, em plena belle époque francesa - no inicio do século XX -, as histórias de Arsène Lupin, dizem, remetiam a de uma contraparte absoluta do já icônico detetive britânico Sherlock Holmes. Talvez por sua sagacidade cognitiva e por sua articulação profissional, Lupin fora digno de equiparar-se a Holmes; mas a semelhança termina aí, à medida que as histórias do Ladrão de Casaca em nada se assemelham às obras do personagem inglês.
"O Ladrão de Casaca" apresenta cerca de 8 histórias que revelam um personagem cômico e sarcástico, cuja persona completa-se de uma inquestionável inteligência e expertise nas artes do roubo e do furto. A dinâmica entre personagens recorrentes e cenários típicos do século passado destoam, em igual forma, da atmosfera de mistério e curiosidade de Sherlock Holmes. À exceção do conto "A pérola negra" ? no qual se revela ao leitor a excepcionalidade dedutiva de Lupin ? todas as outras histórias tem um gosto e tempero próprios.
Em nenhum momento da obra se faz qualquer tentativa desesperada de legitimar os atos do ladrão, e talvez seja essa a graça de seu personagem: ele não é, em praticamente nenhum aspecto, um herói que age pela deliberada necessidade de perpetuar o bem e a paz. Longe disso, Lupin é um gatuno, atuando sob as próprias regras e princípios, sempre em benefício pessoal e, de forma inequívoca, contra o espírito tradicional do mocinho, fator aliviado apenas pela sagacidade e pujança de seu caráter jovial e cômico (Lupin está sempre a rir por último, caçoando daqueles que o subestimam).
Portanto, para mim, esses traços únicos e cativantes fazem de Lupin um ótimo personagem não pela extensão de seu caráter, mas pela excentricidade de seu ser. Em muitos momentos, sua conduta quase caótica alavanca a dinâmica das histórias que, sem isso, poderiam ser maçantes e entediantes.
Dessarte, é impossível não citar os contos de abertura, que funcionam em sequência quase impecável, e os quais descrevem a estadia de Lupin numa prisão francesa. A dinâmica do ladrão com o seu principal antagonista, o inspetor Ganimard, recheia os capítulos com graça incansável e aprofunda a relação conflitante entres as personagens. Uma pena, porém, que tais circunstâncias não se repitam em outros capítulos mais adiante.
No geral, os demais contos de "O Ladrão de Casaca" salvam-se por sua qualidade narrativa, porém sem muitos ânimos ou excepcionalidades. Talvez a única coisa que, para mim, faz perder o livro sua força individual é a necessidade de recorrer a essa falsa dualidade Holmes-Lupin, explorada no conto final da obra, que apenas reforça uma relação que não precisa existir. Sim, ambos são criaturas notavelmente dotadas de uma perspicácia mental ímpar, mas que mais se pode dizer a respeito disso?
Lupin e Holmes (ou, mais apropriadamente, Sholmes) são ótimos em seus próprios mundos, e a tentativa de colocá-los em condições equidistantes traz um final anti-climático para uma obra que começou em ótimo nível, mantendo uma qualidade boa subsequentemente.
No mais, "Arsène Lupin: o ladrão de casaca" é um bom livro, que recomendaria a qualquer um interessado em se divertir um pouco com as artimanhas de um gatuno excêntrico?