Pandora 11/09/2023Isto aqui ficou uma bagunça, tudo menos uma resenha, mas vai assim mesmo. :D
Meu primeiro e único contato com Tchékhov havia sido há mais de 20 anos quando li As três irmãs para prestar provas no Sated. Por sorte, após tanto tempo eu não lembrava mais nada, então pude lê-lo como se fosse a primeira vez.
Anton Tchékhov viveu muito pouco - 44 anos -, morreu em decorrência da tuberculose, mas além de escritor e dramaturgo era médico; aliás, ele dizia que “a medicina é minha legítima esposa; a literatura é apenas minha amante”. [1] Escreveu peças, ensaios, novelas e contos e as quatro peças contidas neste livro são as mais famosas, encenadas por várias companhias no mundo todo, inclusive no Brasil.
Não vou escrever a sinopse de cada peça, só dizer que todas se passam em propriedades rurais no final do século XIX na Rússia (exceto As três irmãs que se passa numa vila militar do interior), época do último czar, Nicolau II e de modificações que resultaram na Revolução Russa em 1917. Até a modernização no Império efetuada a partir do governo de Alexandre II (1855-1881), o país era essencialmente agrário; os nobres, donos de terras, em sua maioria, não tinham o mínimo interesse por elas a não ser pelos ganhos que delas poderiam obter. Muitos deles viviam nas grandes cidades, Moscou ou São Petersburgo, ou até mesmo no exterior; alguns nunca tinham nem pisado nessas propriedades. Elas eram tocadas por um administrador contratado, o que podia resultar em roubo, má administração, ou até poderiam prosperar, mas enfim, como diz o ditado, “o olho do dono engorda o gado”. Os servos viviam em situação deplorável, eram iletrados, passavam fome, eram humilhados e maltratados.
Com o fim da servidão, em 1961 (ainda no governo de Alexandre II), houve um certo movimento em direção às cidades, mas lá a situação de desigualdade também era muito grande. Aliás, tanto Alexandre III, pai de Nicolau II, quanto o próprio Nicolau eram mais conservadores que seu antecessor Alexandre II; várias das reformas liberais realizadas por ele foram revertidas após sua morte. E não ajudou em nada o massacre que veio a acontecer em 1905 em São Petersburgo, quando uma marcha pacífica ao palácio real foi recebida com tiros pela Guarda Imperial. Bem, mas Tchékhov tinha morrido no ano anterior, vamos voltar.
Nestas quatro peças, escritas entre 1895 e 1904, elementos da vida do autor podem ser vistas em todas elas. Por exemplo, em quase todas há um médico, que em A gaivota é a figura de mediação, em Tio Vânia um ambientalista já preocupado com o futuro do planeta, em As três irmãs um inquilino alcoólatra e solitário. Em O Jardim das Cerejeiras há a figura de um comerciante rico e bem sucedido, filho e neto de servos, que em situação superior aos nobres falidos, tem condições de comprar-lhes a propriedade. O avô de Tchékhov foi um servo, seu pai era um pequeno comerciante que faliu, mas Tchékhov conseguiu estudar com bolsa e posteriormente, pagando os próprios estudos com os mais variados trabalhos, tornou-se bem sucedido tanto quanto médico quanto como escritor. Ele chegou a ser o responsável econômico por toda a sua família.
Trabalhando como médico, Tchékhov pôde transitar entre nobres e camponeses, estes últimos aos quais atendia de graça, assim como na escrita e na dramaturgia, esteve próximo de artistas e da chamada intelligentsia, trazendo estas pessoas com propriedade como personagens em seus escritos. Era um grande conhecedor da natureza humana. Numa época de grandes (em ambos os sentidos) romances russos, Anton inovou ao escrever contos curtos, em linguagem mais enxuta e peças que tratavam do cotidiano onde a pausa, o silêncio e o subtexto eram essenciais; onde os grandes acontecimentos ocorriam fora de cena.
Uma coisa interessante é observar que as peças estão no livro em ordem cronológica e isto é importante para se acompanhar as mudanças no cenário da Rússia daquele tempo. Em A Gaivota (1896), Arkádina, a proprietária, que também é uma grande atriz, tem dinheiro, mas seu irmão, aposentado, e seu filho, que vivem na fazenda, não. No entanto, o administrador tem uma vida muito confortável e é quem manda e desmanda; já em Tio Vânia (1897), Serebriakóv, o proprietário, sai de Moscou e volta para o campo após a aposentadoria, porque os ganhos atuais são menores, bem como o seu prestígio. Até então, sua filha e seu cunhado é que administram a propriedade; no entanto, eles ficam só com um pequeno salário, mandando os lucros para Serebriakóv. Já em O Jardim das Cerejeiras (1904), a propriedade é dos irmãos Liubov e Gáiev; ela passa cinco anos na França e o irmão não está aí com nada; a filha mais velha é quem administra as terras, mas já não há produção, os poucos empregados que restaram passam fome, os donos estão prestes a perder tudo num iminente leilão. Neste último conto existe a figura de um professor que já discute ideias socialistas.
As três irmãs (1901) é uma peça um pouco diferente das demais, pois se passa numa cidadezinha para onde o pai das protagonistas, agora falecido, que era militar, fora transferido. É a peça onde o passar do tempo é mais marcante. Olga, Macha e Irina, além de seu irmão Andrei, foram criados em Moscou e as moças sonham em voltar a viver lá. A história começa com a animação das irmãs ante a iminência de voltarem a viver na capital, mas ao longo da história, há uma série de impedimentos e frustrações. É um texto complexo, que discute não só anseios pessoais como o futuro da humanidade. É importante também saber que os militares vinham de famílias abastadas e que naquele momento, a Rússia passava por grandes transformações sociais e econômicas, em que os aristocratas, sempre privilegiados, encontravam-se frustrados e sem saber como agir diante das mudanças.
Enfim… todas as quatro peças são muito boas e levam à reflexão. São o tipo de texto que pode ser lido e relido que sempre trará um detalhe a mais, uma nova discussão. Por ora, minha preferida é O Jardim das cerejeiras; nela um ciclo se fecha. No ano de sua estreia Tchékhov falece.
Até hoje há inúmeras montagens teatrais das peças de Tchékhov. Vou me ater a algumas produções em vídeo:
A GAIVOTA
The Sea Gull, filme de Sidney Lumet - 1968
The Seagull, filme de Michael Mayer - 2018
TIO VÂNIA
Uncle Vanya, filme de Franchot Tone e John Goetz - 1957
Uncle Vanya, filme de Stuart Burge e Laurence Olivier - 1963
Ujka Vanja, filme para a TV de Jerzy Antczak - 1970
Uncle Vanya, filme para a TV de Gregory Mosher para a BBC - 1991
Drive my Car, filme de 2021, dirigido por Ryusuke Hamaguchi, é baseado num conto de Murakami, mas tem grande relação com a peça, encenada dentro do filme.
AS TRÊS IRMÃS
Não encontrei nenhuma adaptação direta, mas há um filme turco de 2019, O conto das três irmãs (Kiz Kardesler), de Emin Alper, que segundo crítica de Kel Gomes no Cinematório, “não é uma adaptação direta da peça. Ainda assim, remete a ela e traz alguns diálogos com a própria arte teatral se observarmos o modo como o filme se dedica aos diálogos e como faz a composição de corpos em cena na interação em pequenos espaços”. É descrito como ‘uma obra única que combina Tchékhov e os Irmãos Grimm’, pelo Hollywood Repórter.
O JARDIM DAS CEREJEIRAS
The Cherry Orchard, filme para a TV de David Zwec - 1973
The Cherry Orchard, filme de Richard Eyre - 1981
Il giardino dei ciliegi - filme de Antonella Aglioti - 1992
The Cherry Orchard, filme de Mikhales Kakoyannes - 1999
Obs.: As datas das peças levam em consideração a primeira vez que vieram a público.
[1] Fonte: Wikipédia.