jota 23/02/2022MUITO BOM: em seu último romance Bernhard encarna um impiedoso crítico musical que busca a imperfeição nas obras de arte e nos homens...Thomas Bernhard (1931-1989) é seguramente um dos maiores autores da língua alemã surgidos no pós-guerra. Publicou Mestres Antigos em 1985, obra que o crítico Robert Craft, do New York Review of Books, definiu como “O romance mais saboroso de Bernhard”. Isso, por se tratar de um texto de certa forma cômico, na verdade uma comédia amarga, em que nalguns momentos podemos sorrir por dentro, até achar graça nas críticas ácidas e irônicas que seu protagonista despeja sobre tudo e sobre todos, mas que dificilmente nos faz rir de verdade. A grande anedota desse livro (se é que se pode considerá-la assim), que o próprio Bernhard chamou de comédia, parece estar nas páginas finais do volume, numa ida ao teatro dos dois personagens centrais. Se bem que durante as infindáveis e repetidas falas de Reger, o personagem principal, é impossível não se divertir um pouco. Mas não rir...
Antigos Mestres é a expressão que o octogenário Reger, crítico de música clássica do Times, utiliza para designar alguns pintores famosos do acervo do Museu da História da Arte de Viena: Tintoretto, Bruegel, Ticiano, Veronese, van Eyck, Rubens, van Dyck etc. O conceito também pode incluir conhecidos filósofos, pensadores, escritores e compositores, artistas em geral. Nele entram Shakespeare, Kant, Descartes, Montaigne, Pascal, Voltaire, von Kleist, Schopenhauer, Mozart, Beethoven e muitos outros chamados mestres das artes e do pensamento. O quadro favorito do musicólogo é Homem de Barba Branca, pintado por volta de 1570 pelo italiano Tintoretto. Durante cerca de trinta anos, dia sim, dia não, ele visita o museu para observá-lo. Não exatamente por veneração, como ficamos sabendo depois, mas em busca de alguma falha na única pintura que até agora escapou de seu severo julgamento. Reger considera insuportável estar frente a uma obra de arte “perfeita”, seja um quadro, uma peça musical, um livro, uma escultura etc. A única coisa perfeita que existe seria a natureza...
Mas num dia específico, um sábado em que se passa essa história de enredo mínimo (pois o que importa é o personagem), Reger convidou Atzbacher, aparentemente um pensador como ele (seu filho espiritual, digamos assim), alguém bem mais jovem que ele, para um encontro ali no Museu. Tem algo importante a comunicar-lhe, quer fazer-lhe um convite. Isso só vai ocorrer muitas páginas depois, porque durante um longo tempo o que temos é Atzbacher narrando, repetindo (às vezes seu pensamento parece se misturar com o de Reger) tudo o que o musicólogo lhe dissera em encontros anteriores, especialmente no dia anterior (sexta-feira). Então reconhecemos muito bem aquele Thomas Bernhard de outras obras, especialmente Extinção, a desprezar e depreciar Viena e o restante da Áustria, como costuma fazer em quase todos os seus livros (pelo menos naqueles que li). Não apenas a Áustria aqui, mas praticamente toda a produção cultural e filosófica alemã dos séculos mais recentes. Seus artistas são chamados de hipócritas, estúpidos, falsos, bregas etc. Ele ridiculariza ao extremo o filósofo Martin Heidegger, assim como outros intelectuais e artistas, todos alvos de sua indignação.
Não apenas contra eles se volta Bernhard. Através de Reger, ele continuamente destila seu veneno contra a sociedade austríaca, os historiadores de arte, os professores, funcionários públicos, políticos, médicos, sacerdotes e até mesmo os banheiros públicos de Viena, depois de passar por suas salas de espetáculos, restaurantes, cafés etc. Muito do comportamento de Reger, seu pensamento ácido, tem a ver com o estrago que lhe causou a morte da mulher depois de uma queda a caminho do Museu, a consequente solidão que lhe adveio daí, sua acurada formação clássica etc. Nas manhãs em que não vai ao Museu, vai ao cemitério visitar o túmulo da esposa; passa algumas horas de todas as tardes numa mesa de canto do saguão do Hotel Ambassador. Reger mesmo diz que se o Museu é seu espaço de “produção mental”, o Hotel é onde ele põe para funcionar a “máquina de processar” as ideias lá geradas. Sua vida social se resume praticamente a isso, à longa amizade com Aztbacher e com Irrsguer, um dos vigias do museu, a quem ele ensinou muita coisa sobre arte. Graças a ele, Irrsigler teria mais conhecimentos sobre arte que todos os guias profissionais que diariamente visitam o Museu acompanhando turistas de todas as partes do mundo.
Depois de tudo isso, o que nos resta então é esperar pelo convite que Reger fará a Atzbacher para aquele sábado à noite. Que ficamos sabendo tratar-se de uma ida dos dois ao Burgtheater para ver A Bilha Quebrada, peça do alemão Heinrich von Kleist (autor da excelente novela Michael Kohlhaas), uma comédia de crítica social. E como registrei no início, pelas palavras finais de Reger no encerramento do livro, parece estar o lado mais engraçado de Mestres Antigos: convidar Atzbacher para ir consigo a um teatro que durante muito tempo ele disse ser o pior do mundo. Mais do que uma comédia, Mestres Antigos é um texto pleno de ironia, crítica e mordacidade, que trata de um caso de “loucura perversa”, como finalmente reconhece Reger ser a presente situação. Como se sabe, loucura, solidão e morte sempre foram temas caros a Thomas Bernhard...