Como morrem os pobres e outros ensaios

Como morrem os pobres e outros ensaios George Orwell




Resenhas -


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Henggo 14/04/2024

Orwell é f*da!!!
* UM DIA NA VIDA DE UM VAGABUNDO: um texto direto sobre a precariedade de nosso olhar diante da população de rua. Por mais que seja um relato de 1929, o que Orwell traz aqui é algo atual e que, quase um século depois, permanece praticamente do mesmo jeito. Pelo lado social foi um ensaio que mexeu comigo. Pelo lado literário, é mais um artigo que mostra a capacidade ensaísta do Orwell de enxergar o humano sem precisar de firulas para traduzir isso em texto.

* O ALBERGUE: complemento do anterior, Orwell é testemunha ocular da frieza (literal e metafórica) de um albergue. Eis aqui o tédio, a opressão, a deterioração, o sentimento de ser menos que um cachorro moribundo. Cru, cruel e real.

* DIÁRIO DA COLHEITA DE LÚPULO: que diário massa! Li de um fôlego só. Foi uma descoberta das ruas, dos tipos que vivem nas sarjetas, roubos, mas também da gentileza que emana de onde menos se espera. A ambientação é acolhedora e torna a leitura fluída e cheia de vigor. Foi uma experiência maravilhosa. Descobrir essa experiência social e cultura do Orwell tem sido inspirador.

* EM CANA: a força da narrativa de Orwell se prova aqui pela intenção de ser preso para vivenciar a experiência da prisão. É um relato que, nas mãos de um escritor afeito aos exageros, cairia no melodramático. George Orwell, porém, pende para a observação dos tipos ao seu redor como uma antena que capta nuances do entorno. E isso dá um tom sereno ao relato.

* COMO MORREM OS POBRES: acho que poucas vezes me vi diante de um relato tão cru sobre as entranhas do serviço público de saúde. Novamente, há toda a questão de ser um artigo escrito em meados de 1930. Porém, e isso é assustador, comunga de muitas coisas que ainda vemos hoje, 2024, em nossos hospitais públicos. Terrível e ao mesmo tempo maravilhoso relato histórico.

* EM DEFESA DO ROMANCE: uau, que tapa na cara! Quando um escritor tem peito de falar que os resenhistas são um bando de inúteis e tem coragem de citar nominalmente seus nomes, isso é incrível. Não tenho nada a dizer além disso.

* A POESIA E O MICROFONE | PROPAGANDA E O DISCURSO POPULAR | A POLÍTICA E A LÍNGUA INGLESA: para quem pretende melhorar na escrita (a constante da minha vida), esses três artigos são uma aula. Apesar de serem contextualizados na língua inglesa, eles trazem dicas e reflexões úteis a qualquer pessoa, mesmo sendo datados de quase 01 século atrás. Orwell consegue aqui ser atemporal e aterrorizante ao apontar a deterioração da escrita e o modo como a sociedade inglesa tem se tornado mais burra e cada vez mais distante da leitura. E não é o que vivemos hoje?

* JORNAL POR UM VINTÉM: "chegará o dia em que os jornais virarão um aglomerado de anúncios pontilhados por algumas notícias devidamente censuradas por seus donos." Preciso dizer mais alguma coisa?

* SEMANÁRIOS PARA MENINOS: Orwell aborda aqui os periódicos popularescos da Inglaterra do século XX, porém, isso me levou para o Instagram de hoje em dia. O modo como o autor aponta o sucesso dessas publicações ao enaltecerem  o modo de vida das escolas ricas e a forma como isso atrai o público-alvo diz muito sobre nossas redes sociais.

* A LIBERDADE DO PARQUE: em defesa da liberdade de pensamento.

* A PREVENÇÃO CONTRA A LITERATURA; "[...] A independência do escritor e do artista é corroída por vagas forças econômicas, e ao mesmo tempo é solapada pelos que deveriam ser seus defensores. [...]" Mais atual, impossível. Outro ponto impactante neste ensaio é como Orwell antecipa na década de 1930 a discussão que estamos tendo hoje com a ascensão da inteligência artificial: "[...] É provável que romances e contos sejam completamente superados [por] algum tipo de ficção sensacionalista de baixo nível [que] venha a sobreviver, produzido por uma espécie de linha de montagem que reduza a iniciativa humana ao mínimo." Orwell é foda! Sem contar que este ensaio tem muito do tempero do que ele criou em "1984".

* A LIBERDADE DE IMPRESSA: uma crítica direta e sem meias palavras à covardia intelectual em relação aos temas de alguns livros e reportagens. Ler isso, datado da década de 1940, e hoje, 2024, ver como a maioria dos veículos de imprensa, por medo, se recusam a criticar Israel diante do que tem sido feito na Faixa de Gaza, é muito significativo. E é surpreendente como Orwell faz esse ensaio para denunciar como a deturpação dos princípios de liberdade de expressão quase fizeram "A Revolução dos Bichos" não ser publicado ? algo que se conecta ao embate entre Elon Musk e o STF aqui no Brasil. Viu como Orwell é foda?

* A VINGANÇA É AMARGA: como não pensar na guerra Israel-Palestina (e em tantas outras) lendo este relato do Orwell? A vingança consome as energias, destrói tudo, impede a racionalização - e mata. Muito, muito tocante (e corajoso) relato de alguém que vivenciou as dores da Segunda Guerra in loco.

* PACIFISMO E PROGRESSO: "O primeiro passo em direção à sanidade é romper o ciclo de violência." Vou ficar repetitivo se ficar enaltecendo a maravilha de um autor que em 1940 escreve sobre coisas que estão acontecendo em 2024...

* A QUESTÃO DO PRÊMIO DE POUND: uma defesa pela separação entre a arte e seu respectivo autor.

* "TAMANHAS ERAM AS ALEGRIAS": os dias de um Orwell criança na Escola São Cipriano. Xixi na cama, o lado comercial da educação, surras; o ódio contra os diretores, as descobertas sexuais no início da adolescência, a forma como a escola molda quem somos para a vida inteira; e, por fim, o arremate reflexivo sobre o bullying, a visão das crianças ante os adultos e um certo sentimento de que, apesar de tudo, aquele horror trouxe algo de bom. Para quem sofreu bullying como eu, foi perturbador e ao mesmo tempo incrível.

* INGLATERRA, NOSSA INGLATERRA | EM DEFESA DA CULINÁRIA INGLESA | UMA BOA XÍCARA DE CHÁ | MOON UNDER WATER | O DECLÍNIO DO ASSASSINATO INGLÊS: seis ensaios (junto com "O espírito esportivo", que menciono abaixo) onde George Orwell mergulha um suas vivências enquanto inglês, esmiuçando a própria terra e seus sentimentos em relação a Inglaterra. Aqui, tive uma visão imersiva sobre os pubs, o amor pelo chá, o modo como os esportes atiçam a tolice nacionalista, e até um ensaio cômico sobre como os assassinatos na era elizabetana eram mais interessantes.

* O ESPÍRITO ESPORTIVO: "No cenário internacional, o esporte é francamente um arremedo de guerra. Porém, o mais significativo não é o comportamento dos jogadores, mas a atitude dos espectadores, das nações que ficam furiosas em relação a essas disputas absurdas e acreditam seriamente (...) que correr, saltar e chutar uma bola são testes de virtude nacional." (p.368) Que tapa, senhoras e senhores! Que tapa!

* MARRAKESH: "Todas as pessoas que trabalham com as mãos são parcialmente invisíveis, e quanto mais importante o trabalho que fazem, mais invisíveis são." (p. 396) Tocante olhar humano sobre o fato de que tratamos certos países (especialmente da África e da Ásia) como meros destinos exóticos, esquecendo que ali há pessoas que sofrem. Nós nos importamos mais com os animais do que com as pessoas. Triste verdade.

* EM DEFESA DA LAREIRA: uma ode ao poder agregador de uma lareira na sala. Bizarro pensar que Orwell defende a lareira para que a família seja obrigada a ficar mais unida em um mesmo cômodo, e hoje o que vemos são famílias inteiras que estão no mesmo cômodos, mas cada membro em seus celulares.

* FORA COM ESSE UNIFORME: Orwell raivoso contra a formalidade dos trajes sociais e a necessidade de arranjarem uma espécie de "traje uniformizado masculino" que poupasse tempo e dinheiro. Gostei!

* LIVROS E CIGARROS: eu já o havia lido em outra antologia do Orwell. Um ensaio interessante sobre o erro de dizer que a leitura é um hobby caro e inútil - algo que na verdade só serve para afastar as pessoas desse hábito. Eu mesmo já escutei isso muitas vezes, apesar de estar em uma família formada majoritariamente por educadores, veja só!

* ALGUMAS REFLEXÕES SOBRE O SAPO COMUM: que jeito bonito de acabar esta antologia. É um texto que, muito por causa do título, parece uma pilhéria, mas não. É uma lembrança de que a natureza prossegue independente de nós e de que, se não pararmos de vez em quando para apreciar o que está ao nosso redor, vamos enlouquecer. E um detalhe: Orwell faz essa prévia décadas antes do surgimento do celular. Eu acho que ele nunca esteve tão certo... Finalizo minha imersão neste belíssimo livro com o seguinte trecho, retirado da página 422:

"[...] ao pregar a doutrina de que nada deve ser admirado, exceto aço e concreto, apenas tornamos mais certo que os seres humanos não terão escape para sua energia excedente, exceto no ódio e no culto ao líder."

Orwell profetizou o horror da apatia de nossos dias presentes, violentos e cada vez mais antissociais.
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