Che 25/06/2017
NOIR, FEMINISTA E FREUDIANO
Minha primeira experiência com o selo Marvel MAX, por meio justamente da HQ que o inaugurou, foi arrebatadora. Como se sabe, o MAX foi uma solução encontrada pela Marvel para romper com o Comics Code Authority - que funcionava mais um menos como o "Código Hays" funcionou no cinema.
Por meio dessa ruptura, foi possível abordar uma temática mais adulta, sóbria e madura da nona arte, mesmo que ainda continuasse rondando o universo dos super-heróis, como "Alias" faz, embora os figurões da Casa das Ideias entrem aqui mais como coadjuvantes de luxo do que como peças centrais, mais ou menos como vimos em "Gotham Contra o Crime", da DC.
Já conhecia o trabalho do roteirista Brian Michael Bendis de "Dinastia M", a qual considero satisfatória, mas nem de longe nada de genial, apesar de ter essa fama. Em "Alias", todavia, não há o que hesitar na afirmação categórica: a escrita de Bendis está, de fato, brilhante. Há pelo menos três arcos que, em termos narrativos, beiram a perfeição: "Conexões Perigosas", "Intimidade" e o derradeiro, "Névoa Púrpura", quando o vilão mais obscuro aparece. Todos eles com diálogos sacanas, arrojados, que acertam em cheio na humanização da detetive Jessica Jones, uma espécie de Philip Marlowe de saias, heroína com poderes que nem ela (e nem nós) conhece direito.
A ambientação da trama é de tipo noir, literatura policial hard-boiled, com incursões fantasiosas (afinal, é a Marvel!), mas raramente infantis, muito bem amarradas com um enredo que quase sempre é pé no chão e trata de personagens de carne e osso, inclusive os antagonistas, gente (normalmente homens) sádica e psicologicamente predatória. Esse elemento noir vem ainda com duas facetas pouco usuais em quadrinhos: um feminismo relativamente sutil (mas onipresente) e um mergulho denso, corajoso e praticamente freudiano na mentalidade de Jones, a protagonista com passado traumático, sexualmente à deriva e cercada por homens que, cedo ou tarde, vão decepcioná-la de um modo ou de outro. Todas as três facetas costuradas, repito, com brilhantismo por Bendis, cuja célebre passagem nas histórias do "Demolidor" (o qual, diga-se, tem participação em "Alias") agora me interessam muito conhecer.
Só não é uma HQ perfeita porque eu, pessoalmente, não consigo engolir o traço preguiçoso e fraco de Michael Gaydos, que desenha todas as 28 edições. O padrão que eu espero - e aprecio - num narrativa visual de tipo noir é, talvez invariavelmente, algo mais na linha David Mazzucchelli em "Batman: Ano Um" ou Michael Lark na já citada "Gotham Contra o Crime". A elegância dos referidos desenhistas no jogo de luz e sombra para dar imagem à tramas policiais, se estivesse presente em "Alias", poderia fazê-la tranquilamente uma HQ esmerada em todos os aspectos, com uma estética visual à altura do roteiro e, aí sim, irretocável. Mas até esse problema é atenuado, na medida em que as capas (de autoria de outro artista) são boas e a diagramação é audaciosa, com ótimo uso de páginas duplas em cenas de investigações.
Uma pena que seja uma HQ menos conhecida do que merece, provavelmente por estar fora da linha mainstream. Mesmo pra quem tiver pouca afinidade com a Marvel ou até com quadrinhos em geral, a leitura é plenamente recomendada.