leticiapinatti 16/01/2024
Pertinente e reflexivo
"Nunca em minha vida uma coisa havia feito sentir-me como um prisioneiro das minhas próprias angústias (provavelmente nunca mais escreverei nada), o meu novo passatempo está abalando minhas estruturas, deixando-me à beira de um abismo no qual caí desejando permanecer por lá. (...)".
O livro é narrado por um antropólogo social divorciado, que em um estado de melancolia e desalento passa os dias escrevendo sobre Túlio M. Guerra, homem agora ranzinza e turrão, o qual conhecera na infância, e, à medida que nos guia à grande Metrópole de São Paulo de 1956, em uma época fora das telas, onde o ir e vir se dava apropriado e imprescindível, também abre um universo de reflexão e desenrascos por meio do que julgara ser um mero passatempo. No fim, acaba compreendendo com a escrita o que reservo a mim para não acabar com a graciosidade do desfecho.
Considero O Tempo que Desperdiçamos um romance psicológico muito bem escrito e consistente que aborda temas delicados e necessários ao debate como sexualidade, patriarcado, figura do feminino e masculino dentro da sociedade e a autonomia de ambos em contraste com as ditas regras morais e sociais, entre outros movimentos e temas contemporâneos, com compromisso com a realidade e sensibilidade imprescindível para pô-la em singular enquanto coletiva por natureza. Mergulhei na mensagem como deveria, acredito eu. Posto isso, é importante ressaltar que, na narrativa da obra, não se vê espaço para floreios; a realidade está sendo retratada como nos é: dura, insensível, ferina, adorada, melindrosa, sedutora e interdependente. Seus desenrolares alteram o que temos por certo ou incerto. Algo que Túlio experienciara com grande fortunio e infortúnio.
Túlio M. Guerra, o qual o nome do meio a mãe, Carolina, hesita em revelar, talvez por antipatia ou por se achar acuada por um passado incurado, que tornava a magoá-la vez após vez, nos apresenta ao seu interior com uma doçura e amabilidade quase quimérica. Naqueles tempos, não tão longes assim do que ainda suportamos nos nossos dias, onde homens não se permitiam chorar e demonstravam apego excessivo ao apêndice que os distinguia em gênero, seria um bálsamo encontrar uma figura masculina oposta ao convencional. Seria um bálsamo encontrarmos Túlio, que com os baques da vida, se demuda; nos revelando camadas um tanto desconfortáveis de serem exploradas ou somente vistas.
Sinto-me na obrigação de mencionar a mãe de Túlio, Carolina. É aquela velha história: quando o passado não se tem por resolvido, volta a bater à porta, insistente e mais encorpado, repleno de remorso e com uma vontade sagaz em devorar-nos às entranhas. De fato, Carolina regurgitava todos os seus assuntos inacabados no filho Túlio, descontando não em sua pessoa, mas em seu gênero, tudo aquilo que a engasgava. Tal reincidência acabou se engendrando nos labirintos emocionais de Túlio, sempre sentindo-se rejeitado e mal-amado; um completo resignado pachorrento. E, quando em posse do que havia muito idealizado, deixou escapar pelos dedos com a mesma facilidade de quem fecha uma porta ou resvala o dedo no interruptor para apagar a luz e se deitar, adormecer, e esquecer do que significa ser humano e sentir as dores da vida.
O psicológico entra aqui, na trama entre mãe e filho e no que se espelha e expande desse primeiro contato que, em teoria, deveria ser puro e completamente tomado por um amor avassalador. Fica a questão: se Túlio tivesse procurado ajuda psicológica, não tão comum àquela época e estirpe de figura masculina respeitável, conseguiria entender como o amor se dá? Afinal, Túlio não recebera afeto de nenhuma as partes, nem de mãe nem de pai, este último ao qual acaba por se assemelhar em personalidade depressiva em dias derradeiros.
Não é possível não dar cinco estrelas para a obra. Afeiçoei-me tanto à narrativa, à sua crueza e sinceridade, que seria injusto e incoerente lançar-me de menos do que, a sério, merece. Tocou no profundo do meu interior, naquele lugarzinho magoado que luta para se recuperar. Não quero dar spoiler, o que justifica a brevidade desta resenha, bem como o comedimento.
No entanto, por favor, peço que leiam a obra, enalteçam a literatura nacional e, acima de tudo, de inspirem no que é proveitoso da personalidade de Túlio, mas não sigam o exemplo dele. Não se permitam ser modificados pela bagagem alheia. Não percam a vida, os dias e os momentos, para tomar uma atitude e decidirem ser autores de suas respectivas realidades e anseios. Tenham a coragem de Isabel, independentemente da complexidade de sua condição, e não amargurem-se do passado a ponto de regurgitá-lo em figuras que apenas precisam de amor. Sejam como Raimundo, que encontrou uma maneira, apesar dos pesares.
Por fim, que entendamos a pertinência que o título nos traz e não derpedicemos tempo. O tempo nos é curto, escorregadio e, por vezes, inimigo.