Para a hora do coração na mão

Para a hora do coração na mão Taylane Cruz




Resenhas - Para a hora do coração na mão


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Henrique Fendrich 23/06/2022

O coração de Taylane Cruz
Não é à toa que “Para a hora do coração na mão” (Penalux, 2021) tem esse nome – seria quase impossível chamar essa seleção de crônicas de Taylane Cruz por algum nome que não contivesse a palavra “coração”. Mesmo que a autora não a mencionasse abertamente em vários textos, o leitor chegaria por si próprio à conclusão de que é essa palavra o “leitmotiv” da sua obra. Primeiro, Taylane coloca em cada crônica, inteiro, o seu próprio coração. Depois, empenha-se na mais perigosa e difícil tarefa humana: adentrar em corações alheios. Suas crônicas se concentram em afetos, em restos de vida que esquecemos de viver, e combatem a solidão, e promovem a comunhão.

Sabemos, o mundo é horrível, gosta de assassinar a tiros a poesia – é hostil, pois, ao coração. Por um único dia que fosse, Taylane bem que gostaria que o mundo existisse sem machucar. Mesmo com toda a dor que bem sabemos existir, porém, ela não aceita a visão de um mundo irremediavelmente mau. O mundo, apesar de tudo, também é mágico. E quem sabe se insistirmos um pouquinho, se conseguirmos defender mais o sonho, se reencantarmos a vida, ele não se torna um tanto melhor? Então a sua crônica se transforma em defesa e em registro da magia do mundo, abrindo assim nossos olhos às ternuras nem sempre percebidas no dia a dia e nos inspirando a repeti-las.

Se ainda não nos demos conta do encanto que existe à nossa volta, talvez seja porque não tenhamos, ainda, aberto o nosso coração para que a história dos outros possa entrar. Taylane, porém, se dispõe a fazer esse exercício, já que é fascinada por escrutinar o coração alheio, tatear a alma das pessoas, chegar bem perto, ouvir o que dizem seus sentimentos, extrair delas o gosto profundo da vida – aproximar-se, em suma, do grande mistério que é “o outro”. Ela explica: “Uma pessoa, para mim, é esta confusão de existir com todas as peles, todas as camadas das quais jamais saberemos. O outro é um mundo particular, e eu não possuo a chave. Isto me fascina!”.

Sua ânsia é semelhante a de um Saint-Exupéry, que sabia – e lamentava – que uma pessoa a dois passos de nós está mais distante do que se habitasse as solidões do Tibete. Taylane se esforça para romper essas barreiras, para encontrar a brecha que em todo coração existe, mas que é tão difícil achar. Por que tanta dedicação, se seria tão mais fácil viver apenas para si, como a maioria faz, como preconiza a filosofia dos nossos dias? É que Taylane está atenta a outros saberes, sua filosofia é distinta, é a Ubuntu, a “humanidade para com os outros”, o “eu sou porque nós somos”. Ela já percebeu que não basta estar viva para si, mas também para o outro – e tudo isso vira crônica.

É a partir do contato com o outro que entendemos melhor quem somos, por que sentimos o que sentimos e como, idealmente, deveríamos agir. Não é nunca simples, porém, lidar com os sentimentos humanos – o maior desafio de existir: “Como num piano, as teclas do meu coração precisavam ser afinadas e, aos poucos, fui educando os meus afetos para este difícil (e mágico) exercício”. Taylane se saiu tão bem com o seu aprendizado que as suas crônicas, ao registrarem cenas da vida humana, são grande exemplo de empatia, de como tocar e acolher o coração alheio. E admira o seu cuidado para não conspurcar a pureza das histórias que os outros lhe confiam.

Então é com maturidade e sensibilidade incomuns que Taylane cumpre o que, em geral, se atribui como mérito da crônica, isto é, pôr em evidência os detalhes, as pessoas e as histórias que, de outro modo, seriam engolidos na voragem de nossos afazeres. Atenta, ela sabe que as histórias estão em toda parte, na padaria, na fila do supermercado, no ponto de ônibus, apenas esperando alguém que abra o coração a elas. São pequenas cenas, retratos e milagres do cotidiano, e, de tanto observar, não espanta que, vez ou outra, ela flagre coisas “constrangedoras” como a verdade de um gesto de amor.

E Taylane tem plena consciência do que faz e do papel que a literatura tem na sua vida: “É onde o meu coração defende as coisas nas quais acredita”. Escrever, para ela, é um ofício amoroso de busca pelo coração humano. Por isso, o seu interesse não é tanto dizer, mas escutar – escrever para escutar: quantos autores se empenham de fato nessa mudança de perspectiva? As considerações que ela faz sobre o ato de escrever evidenciam também uma profunda relação com as palavras – saborosos mistérios –, desde menina, sendo que, entre todas, ela busca sempre as mais simples e as mais puras.

É claro que, quando se toca um coração humano, é bem possível que nele haja espinhos, e, quanto mais se observa o mundo, mais fundo se toca em suas feridas, mas é consolador saber que, ao ser apresentada ao leitor, toda essa tristeza que acompanha a vida já foi trabalhada pela delicadeza de uma escritora como Taylane. Assim, mesmo que a dor ainda exista, podemos ter a certeza de que será tratada de maneira a não nos deixar desesperançados de tudo. Ao contrário, a sensação que se tem ao ler as crônicas do seu livro é a de conforto, a de saber que, se há gente assim, nem tudo está perdido. E mesmo o leitor cujo coração Taylane não conhece pode se sentir acolhido.

Nota-se também que ela não está preocupada com “rigores métricos”, suas crônicas têm o tamanho que o coração pede, às vezes duas ou três páginas, às vezes um único parágrafo. E isso já é suficiente para atiçar, para cutucar, para pôr brasa e assim fazer despertar o nosso próprio coração. Taylane é uma das mulheres com menos de 35 anos que tem produzido algumas das mais bonitas crônicas de nosso tempo (só aqui na RUBEM, temos, além dela, mais duas: Natália Sartor de Moraes e Drica Muscat). Não é exagero, Taylane é uma Cecilia Meireles dos nossos dias, é uma escritora já pronta e que, com suas crônicas, consegue realmente tocar a vida de outras pessoas.

site: http://rubem.wordpress.com
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