Uma cadeira na varanda

Uma cadeira na varanda Andréa Martins Dias e Silva




Resenhas - Uma cadeira na varanda


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Anthony Almeida 30/12/2022

Uma rede e um jornal na varanda
Comprei minha rede e escrevo me embalando nela. A bicha é vistosa, vermelha com faixas pretas e abas trançadas à mão. O trançado manual é mais bonito e bem-feito do que o tecido à máquina, me garantiu Nelsinho, que saiu lá da Paraíba e ganha a vida vendendo as peças nos oestes paulista e paranaense. Verifico e garanto que são mais bonitos mesmo. São mais bonitos e fazem das redes que os têm bem mais caras.

Mas, tudo bem, igual a Nelsinho, saí do Nordeste para ganhar a vida neste São Paulo do oeste. Não trouxe rede e, fazia tempo, queria uma. Não iria a Pernambuco só para comprar o artefato e, portanto, estou satisfeito com o balanço da bichinha.

Migramos para cá Nelsinho, eu e, é também depois de uma migração, que Andréa Martins chega a Presidente Venceslau e tece o seu primeiro livro de crônicas. Foi ele que acabei de terminar de ler, acomodado no balanço da minha rede vermelha, naturalmente.

No início de 2020, ela saiu de São Paulo, São Paulo e veio conviver comigo e com Nelsinho em Venceslau. Não sei se ela comprou alguma rede do paraibano, muito menos se o conhece. Sei, porém, que ela gosta de ficar numa rede e na varanda, do mesmo jeito que eu ? é o que ela nos conta na afável ?No jardim da minha casa tem uma flor amarela?, crônica da página 86 e a primeira que li do seu livro.

Enquanto me deito na minha rede vermelha ? e vou parar de falar dela (é que a gente fica apaixonado quando recebe uma carícia e um embalo que tanto desejava) ?, Andréa se deita em sua rede verde e dá ?bom dia, boa tarde e boa noite para desconhecidos? que passam em sua rua. Além de se deitar e se balançar, ela gosta de aguar, com seu regador azul, os pés de romã e babosa, a flor amarela e a citronela do jardim; gosta de passear com os cachorros Zé Maria e Mandela; gosta de estar numa ?cadeira, no fim da tarde, cercada por amigos em uma cidade do interior?.

?Uma cadeira na varanda: crônicas e memórias do interior? (Albatroz, 2021) é o título do livro. Eis a obra que tento resenhar aqui, mas que só consigo cronicar. Notem: falei de Nelsinho, de re? (não, eu disse que não falaria mais dela), de migração?, mas de livro, que é bom, não falei foi quase nada. Pois bora!

O livro de Andréa Martins nos é muito especial. Para ela, o lançamento do volume é fruto do seu reencontro com a escrita. Para mim, também. É o meu reencontro com a crônica. Em sua dedicatória, escrita em caneta azul, numa noite de setembro de 2021, quando a autora organizou o coquetel de lançamento, leio:

?Para o colega de letras,
com o desejo de uma longa jornada na escrita,
com carinho, Andréa?.

O seu desejo tem se realizado. Faz bem um ano que voltei à crônica semanal. E foi no Jornal Tribuna Livre, periódico em que saiu a maior parte dos textos dela. No coquetel, Jamil Challouts, jornalista do TL, cobria o evento para uma matéria. Reencontrei-o e revelei meu desejo de voltar a cronicar. Em 2017, eu havia publicado uma dezena de prosas no Tribuna e, desde então, desde aquele setembro de 2021, somo 55 crônicas na folha venceslauense. Muitas saíram nas mesmas edições em que se publicaram os textos de Andréa, já posteriores ao lançamento do seu livro.

Insisto no raciocínio do entrelaçamento porque Andréa, chamada de Déia pelos amigos (e não posso chamá-la assim, já que só a vi uma vez, lá naquele coquetel), sabe da importância da jornada na escrita como parte do autorreencontro. Foi na crônica, e na memória, que ela achou o abrigo que procurava quando emigrou para Venceslau.

Criada aqui e tendo feito sua carreira de roteirista e publicitária na capital, no começo de 2020, ela vivia um momento difícil. Convivia com um bicho que ?tomava conta de tudo?. ?O bicho é você desnorteada na rua quase se deixando atropelar, é começar a tomar bode do trabalho e a fugir de gente. Qual é o veneno pra matar esse bicho? Não é a cachaça, nem combinação de comprimidos que você calculou tomar e não teve coragem?, descreve na intensa crônica ?Eu e o meu bicho?.

Aquele bicho não era nem o Zé Maria nem o Mandela. O bicho dava medo, podia matá-la e queria que Andréa pensasse sinceramente sobre quem ela é e sobre o que queria para si. Ouvindo-se, junto do eco dos gritos do bicho, ela decidiu, num desespero, pedir aos chefes paulistanos para arrumar as malas e, no mesmo dia do pedido, percorrer 615 quilômetros em busca do colo dos pais em Presidente Venceslau. Saiu de Sampa com o computador e poucas peças de roupas, bem no início da pandemia de covid-19. O bicho veio com ela, sentado no ônibus, na poltrona ao lado. Mas, ao longo de 2020 e 2021, o bicho foi se amansando.

Andréa Martins organizou o livro em três conjuntos e, no terceiro, iniciado com a crônica do bicho, a arrumação dos textos segue a ordem cronológica das publicações no Tribuna Livre. Ao longo da leitura, sua alegria renasce, seu senso crítico aparece, o bicho fica manso. Ela é cronista de jornal e, no meio da pandemia, além de escrever sobre si, dialoga com o noticiário, lamenta as mortes, vive a peste.

O último texto, de abril de 2021, chora a morte dum amigo infectado pelo coronavírus. Com a leitura, vi a diminuição do bicho que a incomodava antes da pandemia. Bom! Vivi, porém, uma doída ressaca de 2020-21 e revi o agigantamento do monstro que tomou o mundo.

Para amenizar o reencontro do leitor com esse momento, a cronista organizou o volume de uma forma em que a primeira parte resgatasse os tempos de antes do monstro e do bicho. Ao se reencontrar com Osvaldo, Geraldo Costa, Fufa, Anna, com os Joãos, Andréa evoca suas memórias e as deles. É desse jeito que ela põe o seu bicho para se balançar na rede verde e se reconstrói. O mundo, todavia, se destrói. Antes dos textos de 2020, na segunda parte, ela reúne seus escritos sobre a Copa do Mundo de 2018. Destoam do conjunto do volume, destoam. Entretanto, fazem sentido contra o monstro, afinal, futebol de copa costuma trazer alegria.

Das crônicas do Tribuna, uma das que mais me tocam é ?Um ano para não esquecermos?. O desfecho de 2020, é claro, é o seu protagonista. ?Acredito que não há quem não se sinta cruzando a linha de chegada de uma grande maratona neste mês de dezembro?. Andréa correu duas e venceu contra o bicho. Ter voltado a escrever, com uma coluna no jornal, ajudou-a muito no seu processo.

Mas, contra o monstro, não deu. O último texto, o da morte do amigo, nos faz fechar a leitura com o gosto da ressaca. Ainda mais porque, numa das crônicas em que Andréa conta os mortos da covid-19, os números mostravam 200 mil vítimas, bem menos do que eu conto neste julho de 2022. Agora, a quantidade de gente brasileira morta passa de 673 mil pessoas.

Voltemos às conexões entre o livro e eu. Foi em setembro de 2021, ao ter tido ímpeto para ir ao coquetel de Andréa, ao ter lido a crônica da flor amarela numa cadeira do auditório, enquanto esperava o discurso da autora, ao ter ido falar com ela para a dedicatória, ao ter ido falar com Jamil para retomar a escrita no Tribuna, foi nesse momento que comecei a enfrentar o meu próprio bicho. Agora, Andréa, temos força e, com a ajuda da escrita que nos reergueu, enfrentamos o monstro que ainda viaja pelo mundo. Volto, também, para a minha rede vermelha. Perdoem-me, mas eu preciso do seu balanço depois de tudo isso.
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