Leila de Carvalho e Gonçalves 30/01/2022
A Poesia De Dedo Em Riste De Adriane Garcia
Estive No Fim Do Mundo E Me Lembrei de Você é um antigo projeto de Adriane Garcia, que iniciado em 2018, só concluído três anos depois. Trata-se de uma seleção de poemas que gira em torno do inextricável e complexo equilíbrio entre o homem e a natureza. Portanto, se de um lado é uma louvação a grandiosidade de ?nossa nave e casa refletida na pupila azul de Gagarin?, pelo outro é uma elegia destinada a lamentar o ataque a diferentes biomas, muitas vezes uma política de governo, e até as consequências da atual pandemia que, no auge, conseguiu isolar o ?bicho-humano? em sua toca com insólitas consequências.
Virus: A borboleta azul tocava genciana-roxa / Cavalos selvagens se recuperam nas estepes / Em lugares em que o homem parou / A vida continua / / O elefante e o rinoceronte indianos / Só tem uma esperança / Assim como as orcas e os golfinhos / Aguardam nossa reclusão / / Terrível proibir-nos abraços / Quando vem uma peste que nos chama pelo nome / Mas os canais de Veneza ficaram limpos / Sorriram mostrando seus peixes.
No total, são 48 poemas que, criados a partir do título previamente escolhido pela autora, formam um guia ou registro de uma extraordinária viagem que cobre a presença e, sobretudo, a ameaça de vida no planeta que ? se irrefutável, reversível ou apenas uma ruptura para o recomeço ? aponta para nossa responsabilidade como seu mais letal predador.
Buraco Negro: ?Um barco de pesca equipado / Com mil barbatanas, redes e arpões / Em cima do trono vê-se o capitão / A tripulação quer enlatar o mundo / Nem me pergunto de onde vem meu copo / Com água / / Havia arenques nos mares costeiros / As fêmeas sumiam para dar à luz / Ovos nas ervas submersas / E os machos despejam seu sêmen / Colorindo de branco / O azul-berçário / / Já não suportamos o capitão no trono / Um buraco de breu quase nos suga / E os leões-marinhos não mergulham mais / O capitão insano persegue a baleia / Moby Dick é o nome / Do fim.?
Um itinerário cerzido em versos que se encaminha para ?lugar estranho, sempre prestes a acabar?, por nós ou por si. Pano de fundo ideal ? ?o máximo de céu e o máximo de inferno? ? para Adriane bater uma foto sorrindo ?com álcool, máscara e uma camiseta estampada: Estive no fim do mundo e me lembrei de você.?
Do Topo Da Cadeia Alimentar
?Você precisa estar comigo para ver / Os recifes de corais / Quanto a gente marca as viagens / Mesmo sem ter o dinheiro / É que estamos dizendo / Haverá // Mesmo que não haja / Você precisa estar comigo para mergulharmos até / O assoalho oceânico /Junto com os cardumes / De modo que os peixes não se assustem / Por não termos escamas // Ainda que tivéssemos / Isso não nos impediria de colocar os pés/ Na terra, trocar na pele calcária das falésias / Partilhar de um por do sol sem dono / Uma noite estrelada / Que nos abrigasse / Embora pareça tarde / Você precisa estar comigo para transformar em palavras / Outros seres, o vento na pele, o cheiro de uma flor chamada / Dama-da-noite, você precisa sentir ternura pelos filhotes / De todas as criaturas, quando nós formos / Tudo será sem nós.?
Finalmente, ?é tempo de reconhecer nosso próprio corpo simbiótico. Parafraseando Carl Sagan, na bela dedicatória da série de livros Cosmos à sua ex-esposa Ann Druyan, ?diante da vastidão do tempo e da imensidão do universo?, esses são nossos conterrâneos e contemporâneos, com quem temos ?o prazer de dividir um planeta e uma época?. No final, somos nós, humanos, maritacas, pinguins, albatrozes, narvais, as testemunhas do fim do mundo?. (Ana Carolina Neves, Prefácio)
Nota: Esse livro é uma iniciativa da editora Peirópolis e ele faz parte da Biblioteca Madrinha Lua que tem como objetivo publicar poesia contemporânea brasileira escrita por mulheres. Um selo que homenageia a poeta Henriqueta Lisboa (1901-1985) e Madrinha Lua é o título de uma das suas obras mais conhecidas.