jota 29/05/2013Bendito livro!Maldita Morte começa com um parágrafo marcante: “Ao longo de minha vida conheci uma infinidade de filhos-da-puta e a nenhum desejei uma morte ruim. Com você não vou fazer uma exceção. O ser humano perdura pelo mundo sem se dar conta da tragédia que o aguarda. Uns inventam deuses para remediar a angústia, outros, ao contrário, atendem ao imediatismo do prazer para afugentar o inevitável, mas todos no final são medidos pela rigorosa igualdade da extinção. Eu já estava advertido do fim, mas jamais pensei que fosse acontecer dessa maneira.”
Por esse belo início já se tem uma ideia do que mais Fernando Royuela irá nos oferecer pelas mais de trezentas páginas restantes. Se você, em vez de muita ação pode gostar um pouco mais de reflexão, talvez Maldita Morte lhe pareça um livro perfeito então. Ou não. Mas ele nunca será um livro apenas mediano, longe disso, impossível.
Bem, quem aqui conta suas aventuras, venturas e desventuras é um personagem insólito, Gregório, um anão que a vida e a sociedade tornaram um tanto cruel e que, dependendo da ocasião, é incapaz de compaixão até mesmo por uma criança faminta. Ele é o narrador e, evidentemente, o protagonista principal deste livro. O título Maldita Morte parece de romance policial, mas a ficha catalográfica diz apenas "Romance espanhol" e é isso mesmo. Embora esse relato seja do gênero picaresco.
Desde que pronunciou as palavras iniciais de sua história, Gregório vem contado a alguém – supostamente aquele/aquela que veio para dar-lhe fim, a “maldita morte” do título – os episódios de sua vida e a história de várias pessoas que cruzaram seu caminho e contribuíram para que as coisas caminhassem para a situação final. Personagens com vidas singulares, como não podia deixar de ser, dos quais Gregório sempre procurou extrair alguma coisa em seu benefício e mesmo trair alguns ou acabar com a vida de outros.
Depois de uma infância miserável, um dia a mãe, uma prostituta para caminhoneiros, doa o pequeno adolescente para o proprietário de um circo mambembe e lá vai Gregório conhecer o mundo (espanhol) e muitos outros filhos-da-puta, que vão alterar cabalmente sua vida. Para contar a história de Gregório, Fernando Royuela vale-se de uma tradição literária espanhola do século XVI, o gênero picaresco.
Explica a estudiosa Ana Maria Platas Tasende, “A categoria da narrativa mais importante na definição do romance picaresco é a da personagem, pois o protagonista desse tipo de relato é justamente um pícaro. O pícaro é qualificado como uma personagem de condição social humilde, sem ocupação certa, vivendo de expedientes, a maioria dos quais escuso.” Exatamente o que faz Gregório o tempo todo.
E segundo outro estudioso, González de Gambier, “(...) o pícaro – anti-herói por excelência - possui uma filosofia de vida assaz particular: é materialista, primitivo, desleal, manifestando inclinação para a fraude e a vadiagem.” Prato cheio para a literatura, não? E com que felicidade Royuela maneja todos esses ingredientes para nos servir a história de Gregório!
Sim, o anão perverso é tudo isso, um somatório de imperfeições humanas, mas também é um sagaz observador da história recente da Espanha, principalmente dos tempos em que o país viveu sob o caudilho Franco até a redemocratização a partir da morte do general em 1975. Mas não apenas isso: depois de muita história e jorros de palavrões os mais cabeludos, ele é capaz também de fazer poesia em prosa, como neste trecho:
“Os poetas, assim como os loucos e os cães, são dados a perceber a agonia do tempo dos homens, a fugacidade de suas épocas e a inutilidade de seus empenhos. O que pode haver detrás da consciência senão a morte?”
Então, pela poesia, pela história singular que narra, pelo personagem e o modo como foi escrito e termina, este não é um livro para multidões mesmo. Também não se pode lê-lo rapidamente, através de leitura dinâmica, como costumo fazer com muitos livros; as palavras e as frases aqui têm de ser lidas com vagar e saboreadas devidamente. Por essas e outras, Maldita Morte é um grande livro, sem dúvida.
Lido entre 16 e 29/05/2013.