Débora Artes 22/03/2022
Interessante, porém incongruente
Enquanto eu lia esse livro, eu fui fazendo pesquisas adjacentes, lendo alguns artigos que corroborasse com a proposta do livro e como eu poderia expandir a minha própria pesquisa. E minha resenha se baseia em uma análise dos fatos apresentados pela equipe de casos arquivados e da minha interpretação acerca dos artigos lidos.
O livro The betrayal of Anne Frank: A cold case investigation ou em português "Quem traiu Anne Frank: uma investigação de caso arquivado", foi escrito por Rosemary Sullivan, biógrafa, poetisa e antologia canadense, convidada a escrever esse livro pela equipe de investigação, reunida por Pieter van Twisk, um produtor holandês, e um ex-agente do FBI, Vince Pankoke que foi escolhido para liderar cerca de 20 investigadores, entre os nomes mais citados estão os de Thijis Bayens, Luc Gerrits e Monique Koemans. Desse modo, é entendível que grande parte, se não toda a informação contida no livro é pesquisa que a equipe fez. No entanto, isso não isenta a autora do livro de algumas inconsistências, como irei me referir a cerca de alguns problemas que tive com os supostos fatos apresentados ao longo do livro.
O meu primeiro incômodo com o livro é a utilização do substantivo “traição” logo no título, que onde, subentende-se como algo pessoal, ou seja, entende-se que se alguém os traiu, então está pessoa possuía de forma privilegiada o conhecimento do esconderijo e quem eram e quantas pessoas o anexo abrigava e não alguém que se deparou com tal informação. E se delatar uma família que você não conhece foi algo que você teve que fazer para salvar sua própria vida e família, ainda seria uma traição? É algo que o livro não considera, não até chegar nas últimas páginas do livro. Como também, o uso “traição” e “colaboração” como sinônimos e muitas vezes em sentidos distintos, tornando a interpretação muitas vezes ambígua. Necessariamente não é uma problemática, visto que pode ser facilmente corroborado com o mecanismo de marketing utilizado para evidenciar e atrair holofotes, afinal, a pergunta que permeia a história da Anne Frank, é quem os delatou para a SS. E, foi, por tanto, que o anúncio da publicação e posteriormente a suspensão da publicação do livro pela editora holandesa causou tanta repercussão.
Outro fator importante é como a questão entre às duas instituições da Anne Frank, a Anne Frank House, aquele que administra a casa e Anne Frank Fonds, fundado pelo próprio pai da Anne, Otto, em que detém os direitos autorais, a questão parece impressionar os investigadores, quando ocorreu uma ação judicial em 2015, das duas instituições, mas a investigação começou há seis anos, em 2016. Em relação à questão judicial impressionar os investigadores ou se é que realmente chegou a impressionar, ou é como foi descrita, porquê caso contrário é no mínimo estranho. A própria Anne Frank Fonds, levanta o questionamento sobre o título “A Cold Case Diary: Anne Frank” - não era apenas Anne e Otto Frank que foram traídos – embora às vezes o livro pareça apresentar essa visão.
Ao ler as primeiras páginas, especificamente a trigésima página, a autora nos apresenta os principais investigadores e demais pessoas envolvidas na investigação, mas incrivelmente não há nenhum historiador especializado no Holocausto na própria equipe. É, sim, existentes historiadores públicos, mas nenhum especialista que corroborasse de maneira assertiva sobre os conhecimentos do Conselho Judaico sobre o uso de informantes judeus para capturar outros judeus, bem como não há provas de que qualquer Conselho Judaico pudesse ter possuído uma lista de judeus escondidos. Basicamente a equipe de casos arquivados baseou suas conclusões em declarações ambíguas de testemunhas sobre a existência de listas de esconderijos mantidas pelo Conselho Judaico. Não há evidências de que essas listas estivessem na posse do Conselho Judaico, vários historiadores especializados, como Bart Van der Boom, Laurien Vastenhout e Johannes Houwink ten Cate, expressaram suas opiniões em relação a essa suposta evidência, muito menos que havia uma lista que incluía o endereço de Prinsengracht 263. Desse modo o capítulo 34 sobre o Conselho Judaico carece de informações concisas, tornando-se superficial e geral, faltando uma profundidade que um especialista da área poderia fornecer. Sendo esse o principal alvo da maioria dos historiadores holandeses sobre o Holocausto. Pois, a fonte utilizada nesse livro que corroborasse tal acusação é pouco confiável, ambígua, judeus escondidos que colocavam os endereços do remetente escondido? A equipe supõe que tal lista existiu e que o endereço do anexo estivesse nela, porque um informante disse algo, e a ida desse informante ao conselho e não a polícia é algo um tanto confuso.
Outro fator incongruente é que a equipe de casos arquivados presume porque supostamente o suspeito não foi deportado para os campos, que ele não estava escondido, apesar de suas filhas estarem, mas vários historiadores holandeses especializados no Holocausto apontam que o homem em questão estava escondido na época. Bem como também há a incongruência com relação à idade da neta do suspeito, e a dinâmica apresentada. E a investigação que a Anne Frank House publicou em 2016 indica uma provável conexão entre a apreensão das oito pessoas escondidas no anexo e a prisão de dois representantes da empresa de Otto Frank em março de 1944 por comércio clandestino em cupons de racionamento. Um dos detetives que esteve presente em 4 de agosto de 1944 era membro de uma unidade especializada nesses casos. Esses e outros elementos não são mencionados na investigação do caso arquivado.
E é claro que é de grande importância as pesquisas que envolva a prisão dos oito do anexo secreto e a pesquisa foi até bem interessante, mas como disse o próprio diretor executivo da Anne Frank House, Ronald Leopold: “Isso significa que as conclusões vão longe demais. Você não deve marcar alguém na história como o traidor de Anne Frank se não tiver provas conclusivas para isso. Mais pesquisas são necessárias. ”