Coruja 20/05/2022O poder subversivo da literatura em tempos difíceisNa newsletter mensal que assino do Goodreads sou informada dos lançamentos de autores que já li e registrei no sistema. Foi assim que descobri que descobri Read Dangerously, da Azar Nafisi - que eu conhecera pelo excelente Lendo Lolita em Teerã (e bem merecia uma reedição).
O título me fisgou de cara e, a princípio, pensei que talvez tivesse a ver com a nova onda conservadora responsável pela censura de livros como Maus. E, bem, de fato, toca-se no assunto da censura, mas não é esse o foco aqui: Read Dangerously fala, de uma forma mais ampla, do poder da Literatura como ferramenta de resistência e testemunho da História (e claro que lembro d’O Livro do Juízo Final: “para que coisas que devem ser lembradas não sucumbam ao tempo nem se desvaneçam da memória dos que virão depois de nós….”).
Essa é uma tese que sempre me volta a mente, com que eu concordo integralmente. A literatura nos ajuda a superar barreiras e fronteiras e ver o mundo por pontos de vista que, à primeira vista, pareceriam impossíveis. Essa experiência nos aproxima do Outro, que então podemos enxergar com mais clareza como nosso Igual. A literatura é tanto mais subversiva quanto mais nos ensina empatia.
Nafisi faz isso através de cartas endereçadas ao pai, já falecido, com quem compartilhava a paixão por histórias e política. Usando como gancho uma análise de leituras bem diversas - muitas delas de autores que viveram também tempos difíceis e sobreviveram ao trauma através da escrita -, ela reflete sobre o momento de polarização que vivemos, de violência retórica e física, de ataque a instituições e liberdades.
São cinco epístolas no total, passando por questões como autocracia, papéis de gênero, religião, preconceito, identidade, nacionalismo, liberdade, memória, luto, guerra, intolerância, violência policial - em especial, o confronto entre ideias e tirania, “o poeta e o governante”, a necessidade de espaços de diálogo em vez de discursos ideológicos. Para tanto, ela costura em seus capítulos Salman Rushdie, Platão e Ray Bradbury; Zora Neale Hurston com Toni Morrison; David Grossman, Elliot Ackerman e Elias Khoury; James Badwin mais Ta-Nehisi Coates e, numa análise à parte, Margaret Atwood.
Porque “o desespero é fruto do esquecimento”, a memória coletiva transcrita nessas histórias - que são também testemunhos das dificuldades que seus autores vivenciaram - é essencial. Elas nos servem como aprendizado, para nos colocar no lugar do outro, para tentarmos evitar os erros do passado; mas também para nos inspirar esperança.
Da bibliografia citada, li poucos, embora a maioria dos autores me fosse pelo menos conhecida. Contudo, o conhecimento prévio deles não é, de fato, necessário à compreensão da obra (embora ajude). Nafisi usa suas referências literárias como base de reflexão, mas ela fala de eventos que vivemos (e ainda estamos vivendo), temas com que estamos inteiramente familiares. Não que eu não tenha colocado na minha lista de futuras leituras todas as referências que ela fez… o que sempre acontece quando leio um livro que fala de livros…
Algumas críticas que encontrei quando primeiro peguei o título torcem o nariz para o formato escolhido por Nafisi para apresentar suas inquietações. Bem, gosto de cartas, de romances epistolares e até de ler correspondências reais de personagens históricos, então não estranhei a maneira como Read Dangerously é organizado. Pelo contrário, o tom confessional - e os sentimentos tão evidentes de saudade e respeito tácitos nas interpelações ao pai - dão a impressão de intimidade, de proximidade com a autora.
Enfim, esse é um forte candidato à lista dos melhores do ano, tendo me deixado com várias reflexões e uma imensa vontade de iniciar meu próprio projeto de ler perigosamente: porque “isso, no fundo, é o que as grandes histórias nos oferecem: esperança no mundo apesar de toda a sua maldade e esperança na humanidade apesar de todas as suas falhas”.
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